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PENDÊNCIA DE INFÂNCIA

No caminho fui pensando na relação que tive com minha mãe, na infância. No que guardo desta relação e de tudo o mais – porque a minha memória não é das melhores. Fomos onze filhos e, mais tarde, doze. A tradição da época – o mais velho cuida do mais novo – foi seguida. Assim, tive uma Mamãe Ieieia (minha irmã Valéria) como a minha principal cuidadora. Havia ainda todos os outros para massacrar ou mimar uma caçula que teria fechado a produção materna com a famosa “chave de ouro”.

Não tenho lembrança de ter brincado com mamãe, por exemplo. Ou ela comigo. Bebíamos de sua fonte por osmose. Ela era pessoa pública e estava sempre falando, discursando, dando entrevistas, participando de eventos, recebendo pessoas. Discutindo por política. Discutindo para se impor como única mulher no meio da política. Pechinchando na feira. Organizando eventos.

Para mim, restava admirar sua figura. À noite. Quando chegava. E se deixava cair no sofá. Onde cochilava. Roncava. Deixava escapar uns puns. Tirava os sapatos altos e as meias finas e permitia que saísse daquele recém-liberado esconderijo, um chulé. Coisas que por algum tempo a gente acha que não acometem as mães.

Era daquele jeito que minha mãe se tornava humana para mim. Em muitas daquelas noites, eu terminava indo dormir com “o couro quente”. Pois ela vez em quando furava o cerco dos que me protegiam e me dava uma surra. Por motivos que já não sei.

Mamãe não deixava de comparecer aos eventos escolares. E nem prescindia de algumas tradições – talvez vindas de sua vida de menina pobre, a mais velha de tantos, filha de Severina e Cassimiro – como fazer questão da roupa nova para ocasiões especiais. Ela tinha caderninhos de anotações de compra fiado em muitas lojas da cidade. E era lá que nos salvávamos nas noites de Natal ou São João.

Eu adorava ir ao Centro com mamãe. Segurando sua mão. Vendo-a cumprimentar e ser cumprimentada por uma cidade inteira. Vendo-a ser admirada ou xingada. Acompanhar sua relação com comércio e comerciantes. Delas a incursão que mais me fazia feliz era a ida nas lojas de tecido.

Vê-la desfiar o nome de tantos cortes. Observar seus dedos escorregando pelas peças – para sentir texturas. Fazer escolhas. Muitas vezes já segura do que levaria. O pano ideal para os modelos que já levava na cabeça ou desenhados por tantas figuras que me pareciam interessantes – e hoje sei pioneiros de uma Campina Grande provinciana – que não tinham outra opção a não ser vivenciar com pompa seu gênero e sexualidade.

Eu quis a companhia de minha mãe. Tê-la segurando minhas mãos. Enquanto rememorava tudo isso. Em um percurso que me colocou naquele mesmo lugar de vulnerabilidade de quando criança, privilégio dos poucos anos de idade. Aos 43, eu tinha mesmo que ir sozinha. Dirigindo. Morrendo de medo. Cheia de vergonha. Exalando o ímpeto de desistir. E sentindo as dores do crescimento – que já minha filha diz sentir. As minhas, não mais físicas. Emocionais.

Ontem eu quis ter os mesmos nove anos de idade que tinha da primeira vez em que fiz aula de natação. Morávamos longe. Não tínhamos carro. Andávamos quilômetros a pé. No meio de mato e da lama. E consegui, mesmo assim, ser matriculada no curso. No Sesi do bairro da Prata. Adorava ir para lá. Tinha um fôlego comprido e já me imaginava uma campeã da modalidade. Mas adoeci. Dos pulmões. O médico proibiu o esporte na água. Acho que não era para a vida toda. Só para o episódio da enfermidade. Mas dada à dificuldade que era chegar naquela aula, ninguém me levou mais lá. A despeito da cura.

A pendência da infância, como expliquei ao professor, durou a vida toda. Até que agendei a aula experimental. E estava lá na hora marcada. Desse jeito que falei. Vulnerável. Amedrontada. Envergonhada. Querendo a minha mãe. E, ao mesmo tempo, com muita coragem. Apesar da falta de jeito.

Vez em quando me pegava fazendo borbulhas de gargalhadas ao pensar em como devia estar ridícula. Tentando sincronizar braços e pernas. Tentando respirar fora d’água. Não conseguindo executar alguns movimentos e desafiando o mestre a me fazer evoluir. Ele trocou de exercícios. Entrou na água. Incentivou-me com vários “show de bola, Wal”.

De certa forma, vivia uma relação que poucas vezes tive com a água. De necessidade. De ludicidade. De crença no seu poder. De entrega.

Peixe (pisciana) dentro d’água.

Nessas horas sempre me redime a frase de Oswaldo Montenegro. “Nascemos com o ridículo original”. Dar vazão a ele, a este ridículo, tem efeito terapêutico. Nos redimensiona nesse mundo que, afinal, é pequeno para caramba.

Eu saí de alma lavada.

Prometi voltar.

Imagem de Stefan Kuhn por Pixabay


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