Atrasada. A despeito de todas as tentativas contrárias. Incontida por dentro. Mas tentando não fazer das palavras um motivo de arrependimento ao longo do dia. Tentando não ver o copo meio vazio. Tentando dar àquilo o tamanho que tinha. Estava atrasada. E pronto. Para aquele dia, não havia mais remédio. O melhor era eleger estratégias de fazê-lo não se repetir. A minha filha estava atrasada. Para a escola.
Os argumentos, no entanto, saiam da mente com a mesma fluidez das pistolas d’água empunhada pelas crianças no Carnaval. – Você se acordou pouco depois das quatro horas da manhã e está atrasada. A escola é às 7h30. Do que adianta morar perto e chegar tarde? Como tal família faz para ser tão pontual? O que deve fazer a mais – proibir o café da manhã? Gritar? Apressar cada gesto? Acordá-la às cinco horas?
Por dentro, barulho. Para fora. Silêncio. Enquanto tentava fazer tudo ir. Deixar ir.
Foi nesse climão interno que recebi o bom dia do frentista como não muito amistoso. Indicou de forma pouco gentil (ou eu que não estava bem?) a que bomba deveria me dirigir. – Sim. Ainda tinha isso no meio do atraso e seus motivos. Eu já passara tempo demais confiando na luzinha amarela do combustível. Não ia me perdoar se ficasse parada no meio da rua, atrapalhando o tráfego, por causa da infração de não abastecer o carro.
Encostei. Entreguei a chave. E lembrei que tinha saído com uma bolsa bem pequena e, por esta razão, 99,9% dos meus pertences costumeiros não estariam lá. E o cartão do banco? Entrava no rol? Bati no vidro do carro e chamei a atenção do funcionário. – Moço, moço! Espera. ‘Deixa eu’ ver se estou com o cartão. Troquei de bolsa e tal. Fui me explicando.
Ele veio para o meu lado, quase entrou pelo vidro aberto e disse: Acorda mulher. Ainda está dormindo? Isso é hora de dormir?
Eu – cara de poucos amigos – parei de esfregar os olhos. Quis me explicar. De novo. Quis achar que não havia excesso em seus modos. Mas não consegui me convencer. Ele faria aquele comentário para uma madame de pele muito clara, muito perfume francês, muitos dourados saltando do corpo em forma de joias e/ou bijuterias extravagantes e um carro muito de luxo?
Não. Provavelmente não. Penso que a pele preta carimba um lugar de subalternidade. De coisa pública. De abertura ao desrespeito. Lugar de escrava/mucama que não merece mesura. Corpo exposto no pelourinho. Para mais um avilte. É a objetificação dos nossos corpos. É a falsa liberdade apropriada pelo outro para nos tratar em um lugar menor. Para invadir nossos espaços.
Eu não consegui responder. Balbuciei algo. Depois achei que não precisava me explicar. De novo. Aquele homem não merecia. Eu não merecia me explicar.
Mas a coisa piorou quando ele me devolveu a chave. Com os dedos encostando um no outro construí um arco com a mão. Foi aquele lugar, o buraco, onde ele enfiou o comprovante da máquina. Com o dedo indicador enfiou mais o papel. E mais. A ponto de chegar a me ferir. Movimentos bruscos. Contundentes. Cena rápida. Logo acabou. Teria acontecido?
O gesto fálico e abusivo me feriu. Olhei para aquilo. Ele parou. Eu não consegui articular palavra. Saí chorando. Saí querendo voltar. Para esculhambar. Saí querendo procurar o gerente. Saí cansada. Saí derrotada. Saí simbolicamente estuprada. Mas não fiz nada. Com medo da loucura que me seria imposta. Com medo da loucura que talvez eu já tivesse adquirido.
E da dúvida que suscitariam em mim – infelizmente já introjetada. – Estaria eu criando coisas? Louca mesmo? Vendo problemas nas atitudes de um senhor que, coisa boa, ainda conseguia colocação no mercado?
Era racismo? Ou era loucura minha?
Era um gesto desrespeitoso de cunho abusivo e sexual? Ou era o modo daquele homem? Era pela cor da minha pele ou ele faria a qualquer uma?
De novo me concentrei em deixar ir. Mas o gesto. O dedo se empurrando na minha mão. Não saiu de mim. Até agora.
Há momentos em que a gente já não sabe definir o que as coisas são ou deixam de ser.
E, de quebra, vai enlouquecendo.
Imagem de Steve Buissinne por Pixabay