Não gosto de ler críticas sobre filmes badalados antes de vê-los.
Assim, só conhecia o nome 'A vida invisível', quando decidi reinaugurar minhas idas ao cinema aos domingos.
E que nó na garganta. E que vontade de chorar. Gritar. Soluçar alto. No lugar de tudo o que contive no espaço público onde estava.
Entendi quem deixou a sala antes do final.
Agradeci pela presença dos homens.
Tive um reencontro com muitos dos meus textos. Com muitas das minhas reflexões. Com o título do meu livro ‘Que o nosso olhar não se acostume às ausências’.
Esbarrei no ser mulher. Das décadas de 40 e 50. No ser mulher de agorinha mesmo.
No ser mulher de quem veio antes e nos permitiu ser mulher. Agorinha mesmo. Estar sendo.
Pensei muito na minha irmã Vitória, com quem tenho uma relação tão visceral quanto Guida e Eurídice, as que têm sua história contada ali.
Ouvi todas as vozes silenciadas. Femininas. Ensurdeci para todos os gritos masculinos. Ainda que se impusessem pelo silêncio e por existir. Apenas.
A alegria pouca. Rápida. Abafada. A dor. A doença. O estupro. A loucura. O aborto como redenção. Impossibilitado. A gravidez como fardo. O filho abandonado. Como fardo. O filho retomado. Como legado. O amor forjado. O sonho tentado. Até não poder ser. Sonhado. O amor fingido. O autoflagelo. A busca. A esperança. Longe. Acenando. Como fantasma. Transpassado. Família. Família de bem. Pelo bem da família. Que se degrede. Que se expurgue. Que se esprema. Que se exploda. O resto. E o todo.
Há negros no filme. Não é filme que trata da questão racial. Nem se discute se estão como protagonistas. Ou subalternos. Aparecem. Como na vida. Deviam aparecer. De um jeito diferente. Que não sei explicar. Do de hoje. Nas periferias. Na praça. Na dança. Na música. Na lascívia. Dando lastro e ambiente. E amor. E aconchego. A meninas brancas que se tornaram negras. Por engano. Pelo engano. De acreditar.
Quantas Guidas. Quantas Eurídices. Em cada família. Quantos segredos. Quantas omissões. Quanta destruição. Quanta implosão. Quanto força no existir. Transgressor. De juntar todas as belezas. Em um lugar invisível. Mas presente. De fingir. Gozo. Para passar melhor. De fingir-se morta. Para sobreviver. Dualidades. Que todas carregam. Nas décadas passadas. E agorinha mesmo.
Quanto de cada não-ser existe em cada mulher que é. Quão porosa é sua estrutura. Sua fortaleza. Sua máscara. Sua dissimulação. Seu grito fingido. Sua alegria oculta. Sua dor trancada. Seu olho que brilha por trás do opaco. Seus desejos secretos.
Ir para São Paulo. Era o sonho mais sonhado que conheci. Vinha de Dona Fátima. Trabalhou na minha casa. Foi. Voltou. Com o sonho dilacerado. Engolido pela verdade. Quisera nunca tivesse chegado lá. São Paulo. Seria sempre possível. Com solução. Mas foi pá de cal.
Ir para a Grécia (na verdade, viver um grande amor). Era de Guida. Ir para o Conservatório. Era o de Eurídice.
Ser família. De bem. Do bem. Era o desejo masculino.
Definharam os corpos de outras. Alfinetados por tanto silêncio. Tanto querer amordaçado.
Ser mulher.
Fardo. Antigamente. Agorinha mesmo.