Há dias estava com a pendência. Precisava lavar o carro. Seu estado de barbárie – mistura de poeira, lama, resíduos variados – já me fazia querer esconder-me, pelo delito da sujeira, de amigas e amigos que entravam ali para receber uma carona e mesmo da filha – passageira frequente, porém, resignada ao estado daquelas coisas.
Naquele dia não tinha feito planos de lavagem. Mas o destino me fez entrar em posto de gasolina bem cedo da manhã quando não existia ainda fila no lava-jato. Foi quando tive a ideia de resolver a pendenga antiga. Negócio arranjado, sentei-me para esperar o serviço.
No intuito de tornar criativos aqueles minutos de ócio, cutuquei a bolsa para ver o que me oferecia. Óculos de leitura. Um livro da coleção Feminismos Plurais. Lá pela página 42, os olhos pesaram, reclamando boa parte do sono roubada na madrugada por um acordar repentino e um adormecer de novo bem perto da hora da estar de pé.
Sentindo uns raios mornos de sol que rompiam as nuvens pesadas de chuva, deixei pender a cabeça sobre o ombro. E ter ali uma mistura de cochilo com torpor. Dormia profundo e ao mesmo tempo estava desperta. Tanto assim que decidi a hora de me reerguer e encarar a rotina de um posto de gasolina. Por onde circulavam dezenas de carros e seus motoristas, alguns dos quais, conhecidos de longas datas, mas com os quais não quis manter contato visual, mirando o lado oposto tão logo os identificava.
Sem interlocutores e sem querer voltar à leitura, observei um cliente que não estava ali antes que eu adormecesse. Conversava com o funcionário responsável pela lavagem. Contava, em princípio, que desfez sua aplicação para comprar aquele carro de luxo. Estava velho. Filhos criados. A mulher (e aqui deixava reticências que não nos deixava conhecer o momento atual da esposa). Ia querer guardar dinheiro para quê? Estava certo, respondia o interlocutor com as mãos molhadas. Tinha que aproveitar era agora mesmo. Quando morresse, levaria nada.
Foi a vez de falar do interlocutor, o funcionário do posto. Contou histórias de quando chegou a Brasília. Falou bem de sua terra natal. Demonstrou alguma saudade. Certo pesar em ter abdicado de suas raízes. Fazia planos para o futuro. Deus quiser, logo ia comprar um carrão daqueles do patrão temporário. Mas para conseguir era preciso estar solteiro. Casado ninguém conseguia.
Aí, meu ouvido se apurou. Achei maledicência colocar a culpa de não conseguir poupar dinheiro, na mulher. Pensei se tinha planos de separação para poder conseguir o feito. Pois ele acabara de se declarar casado. Também de forma enviesada. – O que você me diz de uma mulher ruim dessas? É ruim aquela mulher. Não preparou nem um pão para eu comer.
O dono do carrão não disse nada. Ignorou que fora chamado a dar opinião sobre algo tão pessoal.
Por minha vez, me dediquei a pensar um pouco na razão da existência de um casal em que uma parte, a feminina, a mulher, a companheira, a esposa, fora citada duas vezes em conversa fortuita entre um jato de água e uma bucha com espuma. Ambas em condições pouco alvissareiras.
Segui com meus botões (e o carro limpo). Querendo saber, afinal, o que se espera de uma mulher.
Imagem de Arek Socha por Pixabay