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AMOR NÃO É GANCHO NA COBERTURA DE FEMINICÍDIO

Há muito tempo não tenho o hábito de ligar a tevê para acompanhar a programação dos canais abertos. Mas vez por outra tenho ligado a televisão para assistir aos telejornais. Para conhecer um pouco a linguagem, a interação, ver a cara dos jornalistas – isso não muda muito – a cara deles tem pele clara. E isso cansa. Uma ou outra aparição preta funciona como uma espécie de cota. Mas não cola quando pensamos nos números – gente preta é a maior parte da população desse Brasil.

Hoje quis ver o telejornal matinal. Mas pior do que a constatação repetitiva, que não causa surpresa, mas asco, da cor da pele da maior parte dos profissionais que aparecem na tela, foi ver a cobertura para uma tentativa de feminicídio no DF, onde 27 mulheres foram assassinadas por homens com quem mantinham relações de afeto ou com quem queriam romper a relação de afeto, apenas em 2019.

Como jornalista sei que a pressa é um componente indissociável das hard news, da notícia diária, do que acontece no momento em que tem que ser reportado, muitas vezes sem deixar tempo para uma apuração ideal ou a reflexão sobre uma narrativa acertada. Ainda, como guarda-chuva, há a linha editorial, as pesquisas, o tal “o que as pessoas querem ver”.

Mas ouvir uma vez feminina narrar que o amor de uma filha salvou a vida de uma mãe, me pareceu cruel. Por amor, por amor, a jovem de 19 anos teria se colocado entre o corpo da mãe e do homem que empunhava uma faca ávido por matar. Por que escolher fazer romance de uma história de terror? Por que colocar como heroína uma vítima? A matéria dizia que mãe e filha foram atingidas, afinal. Ambas levaram várias facadas. Mas estão vivas, felizmente.

O homem, namorado da mãe, tinha 15 notificações pela Lei Maria da Penha. Ao descobrir e querer se desvencilhar de um algoz que mais cedo ou mais tarde mostraria a que veio (se é que já não exercia o padrão violento que culmina com as tentativas de morte ou sua consecução) ela foi atacada. A filha, no desespero, entrou no meio. Desarmada. Empunhando o corpo fragilizado pela forte emoção. Seria presa facilmente abatida.

Onde poderia estar o foco daquela matéria? Eu me perguntava. No risco que ambas correram? A atitude da filha, instintiva, com certeza, colocava sua vida também em risco, como colocou. Foi atingida quatro vezes. Em um momento assim há conduta mais acertada? Por que o homem, a despeito de 15 notificações, estava livre para mais um ataque?

O que as políticas públicas estão fazendo para barrar essa onda que está varrendo a vida das mulheres do mapa das maneiras mais sanguinolentas e desumanas e variadas? Onde fazer arrefecê-la? Como incluir o homem nessa pauta, que pode e deve ser educativa?

Eu nem dou conta de todas as perguntas. Não domino todas as respostas. Mas tenho a certeza que o viés do amor salvador de uma filha, quase morta, por sua atitude altruísta, tira o foco da questão principal. É injusta. Indecente. Ineficiente.

Forjar uma salvadora da pátria às 6h da manhã, na figura de uma pessoa de 19 anos atacada a facadas, da maneira como sua mãe estava sendo, pelo homem com quem se relacionava, é fechar os olhos para o papel social de um comunicador, de um veículo de comunicação essencial como uma emissora de televisão. É despojar-se da sua condição de mulher (uma profissional mulher) para bancar um espetáculo sobre a desgraça alheia. Mais uma vez.

Eu espero que a pressa não justifique a inimizade. Com a ética. Com a perfeição, nem se fala.


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