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O INIMIGO SOU EU

Era noite. Olhei para a pia. Pensei em quantas vezes, só ontem, tinha posto as mãos ali. Uma luta inglória. Sem fim. Lembrei do meme: a gente nasce, cresce, lava louça e morre. Vez em quando a frase vem com uma carga de certeza tão grande quanto a própria morte.


Em meio a tantas atividades diárias – incluindo as domésticas – a louça suja parece a mais urgente. A mais insurgente. Ela não costuma ser discreta. Alardeia sua presença. E não apenas no espaço da pia. Em todos. Torna-se onipresente uma louça suja.


Era noite. Olhei para a pia. E a despeito de um trato anterior comigo mesma de não permitir que pratos sujos amanhecessem o dia nessa condição, concordei que uma seta-feira não precisava terminar daquela forma. Com a minha dedicação à bucha e ao detergente. No lugar, deitei-me com planos possíveis para aquele dia. Continuar lendo o livro da vez. Ver um filme. Tudo isso depois dos rituais de sono de minha filha. E do nosso tradicional papo noturno. Em geral, adormeço antes do livro e do filme. Foi assim ontem à noite.


Acordei desejando cozinha livre de passado. Pronta para começar o dia com toda a liberdade para a preparação do café da manhã. Mas a noite parecia ter ganhado vida. E reproduzido o amontoado de pratos, talheres, utensílios. Alguns ancorados no escorredor. Outros esperando mesmo pelo ritual do banho. O balcão parecia uma zona de guerra. E eu, uma combatente, ferida. Largada no chão. Deixada à própria sorte. Para um fim lento. E solitário. Não conseguia montar uma estratégia para me tornar combativa. Por onde começar?


A pergunta se repete muito. Por vezes, sinto-me menor do que qualquer missão apresentada pela vida. Nem que ela seja lavar os pratos. A procrastinação. Veio como uma palavra que se encaixava ali e traduzia a cena. Maior que uma palavra, um hábito. Uma postura. Um problema. O verdadeiro inimigo. Desarmado. Com cara de cachorro que caiu da mudança. Inofensivo. Porém, enorme. Com ares de intransponível.


Não havia outro jeito. Eu precisava encarar a pia. Quanto antes, melhor. Uma menina já aparecia vez em quando para reclamar fome. Era necessário começar. Sem saber por onde mesmo.


Tentei fazer um estudo – rápido – da psicologia daquilo tudo. Por que deixar para depois? Por que me atormentar tanto com aquela necessidade, tão básica quanto respirar? Por que tudo para mim fica tão exagerado?


Toda a dedicação de chegar a uma resposta. Plausível. Não mudaria a realidade daquela pia. Transformada em inimigo. Em rival. E como tal, com algo a ensinar. Uma lição a ser aprendida. Apreendida.


Lembrei-me de um cartão antigo que recebera. Ninguém passa na sua vida por acaso. Sempre leva alguma coisa. Sempre deixa alguma coisa.


Era sábado de manhã. E eu pensando na pia. No que deixava na minha vida. E eu pensando. Nas pessoas e coisas e casos e causos. Indesejados. Muitas vezes gigantes apenas sob a lente de um não enfrentamento. Paralisados no tempo sob a forma de um não agir.


Eu encostei a barriga no tanque. Eu peguei a bucha. E o detergente. Eu lavei tudo o que havia ali. E não saberia dizer por onde comecei. Apenas comecei. E terminei. O trabalho. A que me determinara. Num arroubo. Como se não houvesse antes ou depois.


Quando terminei, tomei certa distância para contemplar o feito. Não havia inimigos. Eu vencera. A mim mesma.









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