Estava em um salão de beleza.
Subia as escadas conversando com um interlocutor sobre a notícia que acabara de receber pelo telefone. Um feminicídio – mais um – no Distrito Federal. Li a manchete em voz alta e disse estar arrepiada. Seguimos falando sobre o assunto até chegar no salão. Quem estava lá, enveredou no tema. Referindo-se à Letícia. A mulher que desapareceu e foi encontrada morta no início da semana, também no DF. O assassino, confesso, deu conta de mais vítimas, enquanto outras, sobreviventes, foram à delegacia reconhecer o homem como também perpetrador de violência contra elas. Até a última conta que vi, nove.
Os comentários e opiniões eram muitos. Desde quem considerava que a esposa e a filha conheciam os delitos do pai, o algoz, até quem se mostrou muito revoltado com a situação. Como era de se esperar.
Já sentada na cadeira onde seria atendida, veio o golpe na lucidez alheia. Uma mulher interrompeu o assunto anterior para dizer que ontem à noite, em tal lugar, viu duas meninas se agarrando, se beijando muito. Sem nenhuma vergonha na cara, dizia. Uma negona e a outra, branca. Uma negona alta. E a branca. Muito jovens.
De lá, veio outra opinião: Elas fazem na cara da gente. Acham que a gente é obrigada a ver isso. Imagina as crianças. O que elas podem achar. Imagina o que a geração de – e aqui disse um nome que imaginei ser de uma bebê – vai ter que ver lá na frente.
Eu mexi os lábios. Pensei em me meter no assunto. Comentei com o cabelereiro sobre a vontade de entrar na conversa. Ele disse que hoje estava mais ou menos combinado que havia assuntos que não se misturavam. Que não se questionavam. Porque cada um tem seu jeito de pensar. Deu exemplos. De respeito e civilidade. Tolerância religiosa. Não vê um evangélico que pega um panfleto de outra religião na rua, sem dizer nada?
Eu não via. Mas vi que devia pensar da mesma forma. Porque quis apaziguar meus ânimos. Como ademais, já vi outras pessoas tentando fazer com eles, meus ânimos. Eu realmente silenciei. Porque me senti vencida. Porque em alguns tipos de briga, não entro. Saio em frangalhos. Embora sem um arranhão na parte externa do meu corpo.
Depois, vi o texto de Djamila Ribeiro na Folha de São Paulo desta sexta-feira, pedindo o combate ao silêncio. A certos tipos de silêncios. A esses históricos. Que fez o mundo ter apenas uma narrativa. E esta ser excludente. Principalmente de mulheres. E, entre elas, das mulheres negras. Ela diz que se arrepende dos seus silêncios, frase que intitulou o artigo.
Eu, que conquisto a cada texto, um tom de voz a mais. Arrependo-me dos meus. Ainda tenho dificuldade em verbalizar. Em pelejar contra preconceitos tão arraigados. Tão bélicos. De aparência tão imexível.
Lembrei também do vídeo que vi na Internet sobre o ódio e matanças, como no Holocausto, serem frutos, primeiro, das palavras. Dos discursos. De ódio. Ondas sonoras. Transformadas em gestos mortais.
Lembrei das palavras de Alcione. “O senhor precisa ter medo do pensamento. O pensamento é uma força”.
As palavras também são força. Pensamentos postos para fora.
São muitas, como gosto sempre de repetir, citando Drummond, o poeta.
Dia desses, entro em briga. Para falar. Falar também. Com a boca. Usar da mesma arma de quem pensa. Assim.
Quando cheguei em casa, pós-salão, a primeira coisa que vi ao abrir o Instagram foi uma postagem conclamando as meninas a se beijar e se agarrar muito. Na rua. Era de ontem. Dia da Visibilidade Lésbica.
Virei fã da negona alta. E da branca.
Deram seu recado.
Foram vistas.