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SOCORRINHA. PRESENTE

Acordei com a certeza. Retiramos Socorrinha das nossas contas. Era de tarde e os cochilos permeados por sonhos/devaneios/visões se sucediam. Vinham desde algumas noites anteriores. Entre imagens recorrentes e outras que não me chamaram a atenção, encontrei uma sobressaltada verdade. Retiramos Socorrinha das nossas contas. Era impossível saber o que ou quem me soprava a informação. Mas o sopro, de tão longínquo e certeiro, me veio como uma missão.


Era preciso recolocar Socorrinha nas nossas contas. A necessidade fez sentido quando lembrei de uma das Leis Sistêmicas enunciadas pelo psicoterapeuta Bert Hellinger, fundador das Constelações Familiares, segundo a qual, “todos têm o direito de pertencer”. Retirar Socorrinha das nossas contas era o mesmo que negar-lhe o direito de pertencer. E ela pertenceu. Fez. E faz. Parte de nossa família. Foi. Como somos. Barbosa.


Sua imagem fez parte da nossa infância. Minha e da minha irmã mais próxima de idade, Vitória. Ela vinha à tona, saída de um envelope pardo, todas as vezes que nossas brincadeiras recaíam em algo proibido como mexer nas coisas dos outros. Adultos. Tínhamos predileção por roupas maquiagens e outros acessórios de nossa mãe.


O outro foco de nossa atenção eram as caixas de fotos. Naquela época já antigas. Em preto e branco. Muitas com falhas. Buracos. Esmaecimentos. Outras com dedicatórias. E datas. Tão distantes para nós. Dentro do envelope foi que tivemos conhecimento sobre Socorrinha. Eternizada face. Quando jazia, como anjo, em pequeno caixão. Nos parece hoje que o assunto era proibido. Maria do Socorro. Primeira filha. Morreu aos seis meses. De meningite. Foi tudo o que soubemos e quando em vez comentamos. Até que não mais. Até que retiramos Socorrinha das nossas contas.


Convencionamos nos autointitular doze filhos. Todos vivos? Sim. Todos dos mesmos pai e mãe? Sim. Até que o desespero da minha mãe. Seus gritos de dor. Sua incredulidade. Até que a contenção do meu pai. Seu silêncio. Sua incredulidade. Foram os primeiros que vimos pela morte de um filho. Raniere. Em 2014. Todos os outros éramos testemunhas. Vivendo os mesmos sentimentos. Como irmãos.


Mas aquela não era a primeira vez. Ocorria-me agora. Aquela mãe. Maria. Havia chorado já pela morte de um rebento. Ainda quando era muito jovem. Recém-casada. Tempo em que essa dor podia até ser mais lancinante. Penso.


Pedi a meu irmão Roberto que fizesse uma pequena investigação em nossos documentos. Mas eles não são tão organizados a ponto de existirem com facilidade. Nada consegui. Telefonei para mamãe. Com uma voz pouco audível, emaranhada pelo fato de estar deitada e com pouca energia, ela contou o que lembrava. Esforcei-me para não perder palavra.


Infelizmente, foram poucas. “Seu pai era quem sabia de tudo e tinha os documentos”. O que ela me contou: Maria do Socorro tinha oito meses. Era bem gorda. Em um dado momento, passou a só chorar. Recebeu o diagnóstico de meningite. Partiu em pouco tempo. Queimando com febre tão alta que quase não deixara seu corpo esfriar dentro do pequeno esquife que o guardava (esse detalhe foi revelado por Vânia, a primeira menina pós-Socorrinha, depois que eu pedi aos irmãos mais informações).


Foi para o hospital? Não. Dr. Fulano foi lá em casa. Disse que era melhor assim. Porque com uma meningite tão perigosa, se fosse salva ficaria inválida. O resto da vida na cama. Era melhor que eu me conformasse.


Outro médico, um psiquiatra, recomendou que ela, mamãe, naquela época chamada de Nevinha, pois fora batizada Maria das Neves, se acalmasse. “Você é tão novinha. Vai ter tanto menino ainda que vai enjoar”. Os préstimos dele foram necessários pois a mãe enlutada disse que quase ficou “pipirituba”, quase enlouquecia.


Ia todos os dias ao cemitério. Onde deixava flores e muitas lágrimas, enquanto o marido ia trabalhar. Completou dizendo que o corpo de Maria do Socorro fora sepultado em um “tumulozinho simplizinho”. Na entrada do Cemitério do Monte Santo.


De acordo com suas lembranças, Socorrinha teria sido a segunda filha. Para ganhar outra menina, contou-me Vânia, mamãe fez uma promessa. Deixou de comer carne às sextas-feiras – hábito que mantém até hoje, como pagamento.


Não sei como a dor daquela mãe foi aplacada. Ou se a criança foi diagnosticada ou cuidada corretamente ou a tempo. Ela seguiu a receita do especialista em saúde mental. Pariu. Não sei se enjoou. Mas o médico estava certo. Viemos muitos de nós. Somos treze filhos. Sendo que ela sofreu ainda dois abortos.


Nossos nomes passaram a começar com as letras R (para os homens) e V ou W (no caso das mulheres). Socorrinha volta a fazer parte de nossas contas. E pertence a nós. Que guardamos para sempre a misteriosa imagem de uma bebê sem vida. Mas também do mistério da vida que inaugurava o útero de nossa mãe.



















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