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A FALTA

Foi como um banho de água fria. Ouvir aquela mulher. Louvada. Pela sua força. Pelos seus feitos. Pelo lugar onde chegou. A despeito de ter a pele preta. Mulher simples. Do povo. Atributos que usamos para certos encantamentos que nos embotam os olhos para o que a manteve ali. Na condição de mulher simples. Do povo. Sim, podia ser pior. Acho que é esse o consolo. Mesmo que ela tenha tido coragens. Tenha dado um passo adiante. Sua voz tenha encontrado eco. Suas palavras façam diferença. Faltou-lhe o verbo. O tempo verbal. Autoprotegida, como não podia deixar de ser, para a garantia do viver e do sobreviver que a colocavam ali, refez a sentença. Até achar um jeito plausível de dizer o que queria. Ainda assim faltou-lhe o verbo. O tempo verbal. Eu, que não abro mão do meu sotaque (como algo que não teria que perder como sugerem-me todos com tom de obviedade) e ando sempre ostentando, com orgulho, um “nordestinês” com o qual me dou muito bem e tenho intimidade, achei, pela primeira vez, que havia mais seriedade. E lamento. Naquilo. Do que eu supunha. Foi injusto - negar o direito a falar, com correção, ainda que a oralidade nos dê inúmeras licenças. Ainda que estejamos em país continental. Ainda que haja vícios de linguagem fora do âmbito das drogas ilícitas e, portanto, aceitos sem punição. Ainda que estejamos arraigados a expressões idiomáticas capazes de nos apontar identidade em meio à multidão. Ainda assim. Considerei que a ninguém devia faltar o verbo. O tempo verbal. E percorri com a memória todas as peles marcadas pelo sol da lavoura. Todos os dentes faltando pela ausência de cuidados. Todos os pés rachados pelo contato demasiado com o chão. Toda a simplicidade. Em certa medida poética. Toda a pobreza. Inteira de crueldade. Avistei todos os torrões – os conhecidos. Os intuídos. Busquei perfilar todos os motivos para que a tantos, a tantas houvesse sido negada a alfabetização. O estudo. O conhecer a arma do dominador. Lamentei. A falta do verbo. Do tempo verbal. O roubo. Do enxergar. Desbravar. Ressignificar. Decodificar. O que vem das palavras. O saque do poder articulá-las sem passar o apuro de procurar e não encontrar. Senti raiva. Do tempo. Da história. Do poder. Dos poderosos. Das diferenças geográficas. De raça. De classe. De gênero. Naquele momento quis que a mulher apesar de inserida. Não fosse diferente dos outros. Donos de títulos. E cargos. Ela estava no mesmo patamar. Como igual. Mas uns eram mais iguais que os outros. A ela. Faltou o verbo. O tempo verbal.






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