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SEGUREM SEUS CARROS. MEU CORPO (NEGRO) ESTÁ SOLTO

Criei um mantra. Na verdade, não o criei. Apenas decidi repetir os versos de Mário Quintana, já muito utilizados por mim – em textos, mensagens, crônicas – como um mantra. E respondo mentalmente com eles a cada situação que me fere, exaspera, entristece, revolta. “Eles passarão. Eu passarinho”.


Aprimoro o deixar ir. Enfeitando-o com palavras. Bonitas. Poesia. É que nem sempre é fácil a descontaminação do lixo tóxico que a interação com algumas pessoas nos impõe. Às vezes aquilo se agarra a nós, a nosso pensar, a nossa paz, como derramamento de óleo em águas límpidas. Quando a gente acha que esqueceu, a coisa volta como música-chiclete.


Tenho me recusado a ser invadida. Vilipendiada. Vou criando estratégias para me proteger. Para evitar ficar ruminando situações. Ou respostas não dadas. Para não jogar praga (coisa que ainda me pego fazendo) ou desejando o mal (que Deus castiga). Nessa cura sincrética e holística a que me proponho, podia mentalizar um Hoʻoponopono nas costas dos desinfelizes que tentam estragar meu dia. Prefiro Quintana. Porque gosto do Poeminha do Contra.


Tudo isso para contar que tenho voado demais. Eu, passarinho. Eu, passarinha. Eu, flanando sobre os charcos. Sobretudo os do racismo. Sobretudo os dos racistas. Virou situação corriqueira – mais do que o olhar enviesado em lojas e outros ambientes feitos para que vendedores negros, vendedores negros e pobres, parafraseando Caetano Veloso, embalados não sei por qual transe, joguem sobre nós suas desconfianças. Seu desejo de abordar. De humilhar. De menosprezar. De desconfiar. E, mais recentemente, de matar.


Virou situação corriqueira estar perto de carros parados e ver as pessoas voltando para eles para demonstrar que têm donos e os donos estão por perto. Ávidos por proteger seu patrimônio. Virou situação corriqueira que façam soar o alarme, da distância em que se encontram, para demonstrar que têm donos e os donos estão por perto. As pessoas chegam mesmo a fingir que esqueceram algo no seu interior. Abrem a porta.


Enfiam a cabeça lá dentro. Para demonstrar que têm donos e os donos estão por perto.

Nesses momentos. Corriqueiros. Chego a ensaiar uma praga. Como: tomara que seu carro seja arrombado por alguém da pele clara e olhos azuis. Ou verdes. Mas vejo que não faz sentido. Desfaço-me da má intenção e entoo Quintana. Eu passarinho. Eu passarinho. Aí, não resisto a outra intervenção. E misturo nos versos pueris, um Não passarão. Ou dois. Não passarão.


Dia desses, eu estava fumando perto de um carro chique. Acho que olhava fixamente para o vidro. Fingindo-o espelho. Ou atravessando-o com olhares que percorriam minha vida. Assim, senti se inquietar um segurança de empreendimento próximo. Antevendo o sinistro, levantou-se. Caminhou. Esticou o pescoço para minha direção. Também ele quis demonstrar que estava por perto. E foi bem nesse momento que reelaborei um ditado machista, muito usado na minha região. E mantrei pro dito-cujo. Segurem seus carros. Meu corpo (negro) está solto.



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