E já era você naquele vestido. Não o conhecia. E não sei a razão de deter-me a analisá-lo. Suas cores pastel. Seu tecido fino. Suas flores miúdas. Suas mangas compridas. Poderia agora desenhá-lo. Tanto que se grudou a minha memória. Não era sua bata. Seus jeans. Seus casacos. Suas saias. Não havia sido escolha sua. Porque já você não podia escolher o que seria a última roupa a cobrir-lhe o corpo. E já era você naquele silêncio. Naquela cor pálida. Toquei sua pele e senti a falta do calor – o mesmo que aquecia nossos abraços. Uma brisa gelada grudou nos meus dedos. E já soube que a sensação ficaria comigo para sempre. Poderia agora descrevê-la. Tanto que se grudou a minha memória. Olhei sua boca inerte. E vi seu sorriso. Olhei seu pescoço. Agora coberto com um lenço branco. Vislumbrei suas cordas vocais. Ouvi a voz rouca, de onde as palavras escapavam sempre divertidas. Antes disso, revi nossos passos. Vinham de longe já. Revisitei seus gestos de amizade. Entrei na sua casa. Senti o cheiro do feijão bem-temperado, do qual me tornei fã e onde quis chegar, em todas as vezes que fiz um feijão bem-temperado. Sentei a sua mesa. Senti-me acolhida por suas gentilezas de anfitriã. Dividi a mesa com sua família. Acompanhei o crescimento do seu filho. Desde os aniversários no parque infantil até que virasse um jovem estudante universitário. Ajustei a conversa para que se aproximasse da idade dos seus pais. Nunca tive dificuldades com isso. Talvez eu tenha sido desde a tenra infância, uma senhorinha. Avistei os presentes que não se compram, feitos pelas suas mãos e antecipados por uma longa história de como tinha sido prazeroso confeccioná-los. Você gostava de criar modas e teorias, que lhes alimentavam a alma, até a substituição por outras. E outras. Lembrei-me de como gostava de iniciar as frases e de como isso se tornou bordão e motivo de risadagem na turma. “Eu percebi que...” Era assim que passava os dias. Observando. Aguçando a percepção. Forjando em cada rasteira da vida, uma lição. Um motivo para se reinventar. Aliás, das rasteiras, você nunca falou muito. Já as conhecia tendo sido transformadas em outra matéria. E já não era você naquele vestido. E desde a madrugada do domingo, eu sabia. Foi então que saímos para dançar. Voltamos aos primeiros forrós. Fomos de novo aos últimos sambas. Tomamos tantas cervejas quanto nem achávamos suportar. Discutimos um pouco. Rimos um muito. Busquei sua imagem em tantos momentos. E cheguei aos furos. Em quando não fui. Em quando você não veio. Nos desencontros. Nas respostas silenciadas. E no encontro agora impossível. E ao mesmo tempo, contínuo. Não quis culpar o que não se concretizou por nos ter tirado mais algumas chances de convivência. Se a vida segue, bastava-me que fizesse isso. Acompanhei a academia. Não como aluna em aula experimental, como fiz da vez em que você entrou na Ioga. Avistei os mesmos pontos turísticos. Por dentro, a felicidade secreta de sabê-la no mundo. E a certeza de que apareceria. Sozinha. Ou esperando as meninas. Garrafa na mão. Em lugar alto onde pudesse ter certa visão panorâmica. Em todo e qualquer evento cultural. Já agora essa solidão de você. Eu percebi que... Sinto saudade. Por não mais sabê-la no mundo.
Texto dedicado à Flávia Fonseca.