Minha vó, Severina, mãe de mamãe, rezava mau-olhado. Era assim que a gente chamava: rezar. No quintal da casinha onde morava, no bairro do Alto Branco, em Campina Grande (PB), (de onde pouco me lembro, mas me vem em sonhos recorrentes), havia as ervas das quais arrancava três “olhos”, antes de começar o ritual. Arruda e pinhão roxo eram as preferidas.
Segurando os raminhos, ela se aproximava com o corpo franzino, vestidinho de botão e um coque baixo na cabeça, ajustando os ralos fios brancos. Seus lábios se mexiam e deles se entreouvia o que parecia ser Pai Nosso e Ave Maria. Repetidos em ciclos. Era como se ela sussurrasse um segredo. Dos lábios saíam restinhos de palavras e um ventinho bom, estalado, que trazia junto o cheiro e o hálito de vó.
As ervas iam passeando pelo nosso corpo. Passavam pela cabeça. Pelos braços. Peito. Costas. Vez em quando, ela dava umas chacoalhadas na mão, como se quisesse livrar as folhas de algo invisível que a elas tinha se grudado. Enquanto balbuciava, vó parava algumas vezes para bocejar. Nós também. Se havia muitos bocejos, ela juntava os dedos para conter as lágrimas que escorriam com o movimento de abrir e fechar a boca e jogava para longe o aguaceiro.
Quando acabava o trabalho, esperávamos ansiosos para saber. E ela proclamava: Olhado de homem. Olhado de mulher. Ou, a pior das situações, olhado de homem e de mulher. Para nós, era um mistério. Não entendíamos como ela sabia precisar informação tão detalhada.
Recorríamos às rezas de vó com frequência. Era certeza de ânimo e energia renovados. Antes de qualquer passo desafiador, como uma prova, uma entrevista de trabalho, uma viagem, ser rezada por ela, era imprescindível. Mesmo quando estávamos longe, a encomenda era enviada por telefone. Era coisa de confiança e fé. Muitos bocejos e o diagnóstico sobre a origem do mau-olhado depois, nos sentíamos outros. Leves. Sonolentos. Sem o peso que carregávamos antes.
Vó, coitada, era quem ficava meio abatida. Não podia exagerar no número de atendidos por dia. Dizia-se que tudo o que saia de nós, ia para ela. Embora as ervas fizessem o papel de filtro. Depois, o que restava delas, das folhas verdes (pois murchavam na proporção do olhado contido no consulente), era dobrado com cuidado e sapecado fora. Com a recomendação de que fosse levado para as ondas do mar sagrado.
Quando vó perdeu, para a caduquice, sua capacidade de nos rezar, ficamos atônitos. E, o pior, percebemos que ninguém ficara com aquele conhecimento. Sempre respeitamos seu saber a ponto de não pedir a ‘receita’ da reza. Mas nos arrependemos quando a chance se esvaiu.
No último sábado, procurei minha avó e seus conhecimentos em uma vivência de rezadeiras. Era uma dívida que sentia em minha história. Era algo que eu devia ativar em meu corpo e na minha alma. Estive muito perto dela. Ou ela muito perto de mim. Senti seu ventinho soprando minha pele. O seu hálito refrescou-me de novo. O reencontro me emocionou demais.
Foram momentos de muita sabedoria ofertada. De muitas histórias de vida compartilhadas. A força da mulher – inclusive em suas dores, fraquezas, fragilidades – nos presenteou com inspirações e chamados. Os poderes emanados pela natureza e suas ervas nos conduziram. A caminhada teve início. E o bem-dizer fez morada em mim.