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AS SUPER-MARIAS


Houve um tempo em que minha mãe virou super-heróina. Não era uma condição instantânea, vinculada à maternidade. Tinha um feito grandioso a bradar. Com os poderes supremos a ela confiados, conseguiu fazer aparecer uma pessoa. Antes invisível. Orquestrou uma operação de resgate. E, rapidamente como o surgimento dos músculos de Popeye após uma boa dose de espinafre, materializou, lá em casa, uma mulher.


Era cedo da manhã quando aconteceu. A trupe de filhos ainda crianças, esperava a sua chegada. Vinha de São Paulo. Devia trazer presentes. Ou aquelas caixinhas fartas da Varig, cujos itens disputávamos aguerridos.


Se ela trouxe mimos paulistanos, não serei capaz de lembrar. Porque chegou acompanhada de uma pessoa misteriosa e estranha aos olhos infantis. Era a tia. A tia Maria Marques. Retirada de um hospital psiquiátrico, descrito por mamãe de forma contundente como um reduto de crueldade. Uma fábrica de loucos.


Mamãe não adiantara seu feito a ninguém da família. Não pedira permissão. Havia, isso sim, feito um pacto consigo. Tiraria Maria Marques daquele lugar assim que fosse possível. Isso ela pensou uma viagem antes da que proporcionou a salvação da mulher.


Ela sabia de uma tia abandonada após, ao que se sabe, sofrer violência doméstica por parte do marido e perder um filho recém-nascido. Teria sido levada à colônia psiquiátrica com depressão. E esquecida convenientemente no lugar. Por 25 anos. Período no qual perdeu sua sanidade mental. Em função do tratamento recebido. A doença imposta sob a alcunha de cura.


Foi até lá. Viu as condições desumanas em que habitava a tia. Percebeu os efeitos de medicações pesadas e supostos choques elétricos. E decidiu. Próxima vez, levaria Maria Marques com ela. Do Juqueri, em Franco da Rocha, para Campina Grande, alto do bairro de Bodocongó. Era o que acontecia naquela manhã.


Quando acordamos, ainda remelentos, havia a materialização do super-poder. Havia em casa uma Maria de cabelos tosados. Roupas de tecido pesado. Pele enrugada. Passos miúdos – como se estivesse com os pés presos em correntes. Sua fala era ininteligível. Gostava de ficar nua sob o sol. Cuspia no chão. Puxava os fios de cabelos em tique nervoso. Roubava nacos de comida. Xícaras de café.


Sua história foi contada à exaustão. Sua presença deixou de ter um peso para se incorporar à paisagem da nossa vida. Aos poucos, deixou de lado sua medicação. O que permitiu que viesse à tona o que ainda havia dela. Nela.


Arranjou apelidos carinhosos para todos nós. Apaixonou-se por um irmão meu. Chamava-o com voz cantada e aguda a cada refeição. “Vem. Comida tá na mesa”. Seu convite era feito a um amor imaginário. Como a ninguém era dirigida a maior parte do que falava.


Habituou-se a varrer o quintal, chamado por ela de “terreirão”. Também demonstrou habilidade para lavar a louça. Reclamava das rugas no rosto. E dos cabelos brancos. Em finais de festa, bebia furtivamente restos de copos desavisados. Inebriada, cantarolava. Com olhos brilhantes. Gostava de elogiar. E de passar os dedos sobre os tecidos das nossas roupas. Encantava-se com peças de alfaiataria.


O tempo passou. Maria Marques foi se amiudando sob o peso da velhice. Mas estava sempre lá. Já era a própria paisagem. Até que, 36 anos após ter aparecido por obra da super Maria Barbosa, ela nos deixou.


A cadeira que ocupou fica vazia. Nosso coração segue cheio. De gratidão por termos tido a oportunidade de conhecê-la. De admiração. Pela atitude de nossa mãe. Agora, destituída de super-poderes aos meus olhos crescidos, ela virou demasiado humana.


Capaz de uma atitude enorme. Capaz de fazer a reforma psiquiátrica debaixo do nosso teto, muito antes que ela fosse aventada pelos poderes públicos. Capaz de restituir à Maria Marques sua condição. De gente. De mulher. De alguém que tinha uma família.


Ah, essas Super-Marias. Ativaram em nós muito amor.





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