MORTE MORRIDA MATADA
Mais um dia de morte coletiva. Em que se descortina para muitas, a história de uma pessoa. Sua histórica luta para mudar um estado de coisas que faz de cada novo amanhecer, mais um dia de morte coletiva. Porque são muitas as quem morrem. Eu conheci Marielle quando foi assassinada. Eu conheci Sabrina quando se suicidou. Eu não conheço tantas mulheres que os jornais dizem ter “morrido”. Assim, de forma natural, morte morrida com, por exemplo, vinte facadas.
São pessoas que deram a vida. Tiveram a vida arrancada. Por mãos alheias. Ou pelas próprias mãos. Forçadas. Forjadas. A tirar a própria vida. Não por desconsiderá-la. Ou achar que não valia a pena. Mas por terem feito tanto para que não apenas a sua, mas a de muitas, valessem.
Mulheres. Portadoras do gênero que as transforma em alvo ambulante. O objeto com o qual se treina a mira. Atingi-las tem que ser certeiro. Silencioso. Inquestionável. Natural. Crime perfeito. O segredo que não deve ser contado para ninguém. Nosso. Shhhh. Do algoz e sua vítima-criança-filha-sobrinha-afilhada-neta. Sua vítima adolescente-inocente. Sua vítima adulta esposa-namorada-amada. Ex. Assassinada.
Abraçar uma missão pela qual o preço/consequência é pago com a vida. Fazer a coletiva, a morte individual. É para poucos. Poucas. Penso que se perguntados muitos diriam: paro por aqui. Fiz o que pude. Corro risco. Preciso me preservar. Sabrina, de forma contundente e dorida (para quem apenas lê as palavras que deixou e não sabe muito do que padeceu na carne), pediu perdão aos filhos. Ofertou amor incondicional a amigos amados e amantes. E partiu. Em atitude tão grande quanto desesperadora (para quem apenas lê as palavras que deixou e não sabe muito do que padeceu na carne). Sim. Ela disse. Fim. Ela disse.
É mais uma. Mais um dia de morte coletiva. É difícil imaginar o tormento. Ou fácil. Imaginar. Estar nele. Parece cinema. Mas é vida real. Lama. Areia movediça. Podridão. Cumbuca na qual colocou a mão. A alma. A vida. Para a qual ofertou a morte. No afã de tornar imparável – a onda que gerou. As palavras que ajudou a arrancar do silêncio assombrado de tantas vítimas. Sendo ela mesma uma. Desde a mais tenra infância.
Que escorra a escória. Que sejam punidos os culpados. Endeusados. Que se rompam seus altares. Que caiam. Machucados. Que paguem. Que sejam apontados. Presos. Defenestrados. Que tenham a subjetividade devastada. Devassada. Que tenham sua ganância e disfarce. Sua maldade. E seu teto de vidro. Quebrados. Bandidos. Abusadores. Dissimulados.
Um amigo pede para nos inteirarmos da história dela, de Sabrina. Sua histórica luta. Que se mostra tanta para tão pouca idade. Tornou-se fugitiva. Andarilha. Talvez nem ela soubesse onde estava às vezes. Mas sabia onde queria chegar. Ou onde queria contribuir para que chegassem tantas mulheres. Ou, como enumerou, também crianças, idosos, jovens, povos originários, afrodescendentes, refugiados, ciganos, imigrantes, migrantes, pessoas com deficiência, gays, pobres, lascados, fudidos, rebeldes e incompreendidos.
Diante da vida de Sabrina que não para, agora que se foi. Mas paira sobre todas as precisarem. De forças para si ou para a outra. Conhecida ou desconhecida, repito o pedido que deixou. Em palavras que vão ecoar. Soar. Se fazer ouvir. Agora. E sempre.
USEM A SUA PRÓPRIA VOZ. A SUA PRÓPRIA VONTADE. TOMEM AS RÉDEAS DE SUAS PRÓPRIAS VIDAS E ABRAM A BOCA.
