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O VOO DO BICHO HOMEM

Aconteceu. Voou. Não que pudesse fazer isso – como devaneava em seus anseios por liberdade plena. Mirava os pássaros. Rompiam o espaço com técnicas apuradas de aerodinâmica. Lamentava não ser um deles.

Ao contrário, possuía duas pernas. Membros que costumava usar bem fincados ao chão. Não permitindo sequer um pulo. Os passos rijos. Não permitindo sequer levantar a planta do pé. Estava aterrado.

Olhou para si. Homem ou ave? Máquina. Robô. Programado. Sabia dizer as palavras certas para determinada situação. Reagir como esperavam que fizesse. Extirpar de si qualquer laivo de sentimento que ratificasse sua condição de bicho/macho.

Haveria de dançar em dias de festa. Comer à hora das refeições. Satisfazer-se quando tivesse desejo. Consumir para ser aceito. Vestir-se para chamar a atenção. Ter varões para herdar seu legado. Estar em companhia nos tempos de outono-inverno que se avizinhavam.

Era mesmo um robô bem apanhado. Não tinha do que reclamar. Havia amigos. Bons relacionamentos. Pensando bem, faltava a todos, azeite nas entranhas. Rangiam ao menor movimento. Não suportavam gestos brutos. Tinham pouca mobilidade.

Era mesmo um robô. Modelo antigo. Faltava-lhe tecnologia. Magia. Algumas capacidades. Sem as quais não passaria da sua condição bicho-macho. Tal como na literatura, não tinha coração.

Nem passava pela cabeça que podia empreender jornada aventureira em busca de um. Parecia que estava bom assim. Até se tornar invisível. Diante de sua visão no espelho, não refletia. Opaco. Vazio. Porém, funcional.

Tomaria emprestado o que o engenho dos seus pares criara. Para máquinas que buscam por mudanças. Rasgaria o peito para implantar ali, o coração.

Queria sentir o pulso. Seguir impulsos. Implodir crenças. Eclodir-se outro.

No grito desesperado de incredulidade. Voou. Com asas emprestadas. Viu o mundo do alto. Enxergou a carcaça. Parada. Lá embaixo. Mas voava.

Abandonou a armadura. Pessoas. Pensamentos. Modos de viver. Igualmente enferrujados.

Pássaro-livre. Coração no peito.

Aconteceu porque voou. Era pássaro. Desengaiolado.

Bicho-macho tornado homem.


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