Amanheceu.
Era primeiro dia do ano.
Fiz o que fizera antes. Até ali, nada de novo.
Olhei para os lados. Vi o que vira antes. Até ali, nada de novo.
Pensei sobre o primeiro dia do ano. Fiz o que fizera antes. Vi o que vira antes. E, mesmo assim, nada de novo.
Esforcei-me em desanuviar o antes. Enxergar o novo. Até ali, nada dele.
Ouvi sons diferentes. Restos de festas que se recusavam a acabar. O sol parecia ter outros tons. Aqueles com os quais se pinta em dias de feriado. Cheios de preguiça. Parado. Sem indicar quantas horas são. Nem quantas faltam passar.
Olhei para mim.
Era primeiro dia do ano.
Neguei o impulso de fazer planos. De ver naquela data uma grande novidade.
Dessas que coloca tudo de cabeça para baixo. Para o bem ou para o mal.
Pensei na noite anterior.
Prestei atenção no meu corpo.
Eu acabara de acordar. De uma noite de sono. Eu dormi na passagem do ano. Em horário quase habitual. Sem chegar à primeira hora do novo dia. Não estive no litoral. Nem sob chuvas de fogos de artifício. Houve um tímido espocar de champanhe. E um brinde amedrontado de que o adocicado e as borbulhas unidas ao que eu bebia antes produzissem algum resultado que comprometesse a minha capacidade de acordar. Perceber. O primeiro dia do ano.
Dei dois abraços. Após a contagem regressiva. Propus a foto. E o brinde. Não me importava se não estava no litoral. Nem sob chuvas de fogos de artifício. Estava justo onde quis e decidir estar.
Importava-me que o espocar do champanhe fizesse estardalhaço. Que o brinde fosse livre de medo. Fogoso como uma mulher apaixonada. Barulhento como reunião de família. Queria que meus abraços fossem efusivos. Que a contagem regressiva levasse a pulos, gritos de excitação e a uma foto que registrasse sorrisos embriagados. Desvairados. Esperançosos.
Eu dancei sozinha. Cantei alto. Girei as pontas da saia que eu não usava. Olhei para o céu. Toquei as estrelas. Conversei com santos anjos orixás. Abracei a vida que respondia com o sopro. Do vento. Abri os braços. Ensaiei novos passos. Entrei em conexão com o que havia em mim. De sagrado. E profano. De verdades. E mentiras. De sonhos. E desilusões. De vontades. E decepções. De sorrisos. E lágrimas. De perguntas. Sobre o que está por vir. De lembranças leves sobre o que já passou. De muita vontade em construir o que virá.
Era primeiro dia do ano. E eu ainda estava ali. Viva. Detentora do tempo. Falando miúdo com o universo. Em respeito a sua sabedoria. Em aceitação da minha ignorância. Em estado de alerta. Aberta. Para melhorar.
Era primeiro dia do ano. Eu falei sozinha. Recitei cartas não escritas para gente com queria me comunicar. Enviei beijo. Carinho. Saúde. Perdão. Enviei vontade de estar perto. Enviei tesão.
Era primeiro dia do ano. Eu era pura energia. Transmutada no novo que amanhecia. Eu era o abraço. O champanhe. Os fogos de artifício. A foto. O sorriso. A blusa branca.
Eu fui chamada pelo vento. Rodopiei. Segurando suas invisíveis mãos.
São dois pra lá. Dois pra cá.