O som da minha voz. Surpreendeu a mim e aos demais. Apesar de soar difuso – como se ninguém fosse localizar de onde partia – eu sabia a resposta. Saíram de mim as palavras que agora tentava recordar com exatidão.
O que havia dito, afinal? Não teria certeza. Algo como: “pare com a agressão, se não vai preso”. Eu não sabia que podia falar tão alto. Lembrei de uma chefe que me instou a gritar. Reclamava da altura da minha voz. Grite. Grite. Eu não conseguia.
Naquela noite, sim. Eu gritei. E enquanto as cabeças giravam para procurar o emissor daquela sentença. Eu, dona da resposta, felicitava-me por dentro. Você conseguiu. Parabéns. Vai precisar de muita voz daqui por diante. Vai precisar gritar, sim. Aprender a fazê-lo é inevitável agora.
A pessoa a quem eu me dirigia, tão distante de mim, demonstrou medo. Também se moveu em busca de conhecer seu algoz. Mas não fitava ninguém. Quis mesmo esconder-se. Sabia-se vigiado, mas não enxergava o vigia. Tanto pior. Podia ser qualquer um. Podia ser todo mundo.
Ele acabava de acossar uma criança. Dedo em riste, gritava palavras de ordem em resposta a um pedido de desculpas do pequeno. Ele causara algum tipo de acidente, sem outras consequências, além do som que o denunciara. Deve ter derrubado algo. Batido com a mala em lixeira de metal. O senhor que o acompanhava, cabelos brancos, porte altivo, achou por bem ameaçá-lo. Com palavras que eu não ouvia. Mas com gestos e expressões que eu sabia o que queriam dizer.
Depois, passou a segurar a criança pelo braço. Chacoalhá-la. As coisas pareciam que iam piorar quando, saído de não sei que lugar, eu pude ouvir o som da minha voz. Quem estava perto me olhou. Talvez ninguém tenha entendido a razão. A cena acontecia de forma isolada, distante de mim. Depois, eu não disse nada que explicasse minha atitude. A frase circulou no vazio. O senhor, que olhou sem olhar, entendeu o recado e voltou para o balcão liberando a criança de seus ataques.
Ninguém me perguntou nada. Ninguém se colocou a favor de uma solidariedade difusa. Todos voltaram aos seus negócios – de empurrar carrinhos, dar um passo à frente, olhar o celular, conversar com alguém. Eu também.
Mas agora podia sentir o eco quente das palavras arranhando a minha garganta. Meu estado de ânimo um tanto alterado. Era como se eu arregaçasse as mangas da blusa me dispondo ao que viesse depois.
Nada veio. A não ser o meu contentamento. Passei a lei em revista. A da palmada. Sim. Falara a verdade. Ele poderia ser preso. Eu mesma poderia contê-lo até que viessem as autoridades. Senti-me humilhada como aquele menino. O poder. De um homem. Adulto. Cheio de força. Diante de um pequeno assustado. Não vou esquecer a cena. Nem seu o olhar de desamparo. Penso tê-lo captado em um átimo de segundo.
Ao meu preparar para descer do avião, percebi que ele era meu companheiro de voo. Contava a uma funcionária da empresa que seu crachá se rompera. Pouco simpática, ela pediu para ele sentar e aguardar. "Cuidado para não perder o documento', advertiu. O menino viajava sozinho. Carregando a dor e a delícia de ser o que era.