A depiladora me perguntou onde eu estava. Era como se eu soubesse. Estava acordando às cinco, ou bem menos, preparando filha para a escola e eu mesma para o trabalho. Nas próximas seis horas, estava no trabalho. Em meio a isso, pensava em tudo o que estava pendente. Tentava ler. Escrever. Ouvir música. Encontrar-me com os amigos. Ir ao samba. Driblar imprevistos.
Eu ri. Onde eu estava mesmo? Ah, lembrei.
Eu decidi não me depilar mais. Talvez a última vez tenha sido no verão passado.
Eu ri. De novo.
Pensei na razão da decisão. Era vontade de deixar meu corpo livre. Livre de como consideram como ele tem que estar. Livre de depiladoras. De compromisso. Desse custo mensal. Livre de uma cultura que entrou na minha vida de forma compulsória. Pelo fato de eu ser mulher. E impôs um hábito.
Lembrei que quando cheguei em Brasília, já bem deslocada para uma interiorana, mas ainda bem caipira para a cidade grande, fui levada por uma amiga a um salão de beleza muito elegante. Devia ser a única, fora talvez alguns funcionários, a chegar lá de ônibus. Vinda da Rodoviária do Plano Piloto. Ali, desvirginei as sobrancelhas.
Lembro que um chefe, em meu primeiro emprego, olhou para a parte das minhas coxas entrevista pela saia que eu usava e sugeriu que elas ficariam melhores sem os pelos. Argumentou que eu ficaria melhor sem eles. Não estava mais em Campina Grande. Era adulta. Era uma profissional. Ali, desvirginei as pernas.
Hoje, diante de uma depiladora que não entendia os meus pelos pubianos, e perguntou onde eu estava enquanto eles cresciam, me senti uma moradora de Marte largada na Paraíba por um disco voador fora de rota. Ali, desvirginei a virilha. Outra vez.
Segui a rota de preparos para as festividades de Natal e para o verão. Hora de fazer as unhas. Em meio a conversas das quais normalmente não participo, embora costume ir à manicure, sugeri que podíamos trocar o funk tocado na TV por outro gênero musical.
A opinião foi muito bem recebida. Parecia que todo mundo queria dizer aquilo, mas não tinha tido coragem. Sim. Ouvi a resposta em uníssono. Ia propor MPB ou samba, se tivesse sido consultada. Mas logo alguém pegou o controle e passou para Hoje é dia de Pop (ou algo assim). Ahhh, podia passar isso a tarde toda, disseram.
Eu nunca tinha visto o programa. Sequer sabia da sua existência. Repeti, por conta própria, a pergunta. Onde eu estava?
Já me sentia constrangida, quando veio um quadro do programa de Luciano Hulk. Quase uma hora depois, eu não conseguia saber o propósito da entrevista longa, que eu ouvia aos retalhos. “Alguém sabe o objetivo desse quadro? Não tem fim.” Ninguém sabia.
Depois, veio o depoimento de uma cliente. Adepta de procedimentos estéticos e cirúrgicos. Ali, fiquei sabendo que em um tipo de cirurgia, o umbigo original é substituído por um muito bem apanhado feito de algum material que não apreendi qual. Também que há outra intervenção capaz de tirar a gordura das bochechas. Que tal médico era o melhor. Que fulano era o pior. Que alguém ficou com o peito de silicone caído e se era para ser assim, melhor ter ficado com o natural. Que a aureola de outra tinha ficado torta.
Eu voltei a me perguntar onde estava. Cheguei a me culpar por ser tão desatualizada e alheia a coisas tão caras e importantes para uma mulher. Recobrei a consciência. Eu não sei onde estava. Mas gosto muito desse lugar. Ele me blindou de tudo o que eu acharia desimportante. Do meu disco voador, vejo um universo pequeno. Suficiente para o que me compõe.