Esse ano eu não morro
O presidenciável Ciro Gomes, em debate televisivo com seus pares candidatos, disse não ser demagogo de não admitir, mas, felizmente, fazia parte da pequena parcela da população que podia pagar por um plano de saúde.
Eu estou do outro lado. Do lado da grande parcela da população que não pode pagar por um plano de saúde. Já pude. Mas ele foi cortado junto a outros itens que eu julgava importantes – e eram e são – mas foram vetados do orçamento, despencando para a categoria de ‘supérfluos’.
Lembrei disso por ter recorrido ao Sistema Único de Saúde no final do mês passado. Passei, em questão de minutos, de uma pessoa saudável em almoço de domingo para uma criatura com febre alta, dores intensas e imobilizadoras. Sequer conseguia segurar o telefone para buscar auxílio. Com as forças restantes, avisei no grupo da família que estava mal. Pedi que monitorassem a minha filha pelo telefone fixo. Eu estava, como se diz no Nordeste, anoitecendo sem saber se amanheceria.
Por sorte, amanheci. Já cercada pelas pessoas que cuidariam de mim e da filhota pelos próximos dias. Saí da cama com dificuldade rumo ao Hospital da Asa Norte. De lá, após triagem, fui encaminhada a um Posto de Saúde, na Asa Sul. Lá, atendida por um médico daqueles que ignora o paciente, faz uma anamnese pífia, trata mal e tem gestos rudes e brutos.
Ao ver que me receitava um xarope, eu interrompi a prescrição. – Doutor, tenho problemas respiratórios recorrentes. Nunca saí de uma consulta com a indicação de tomar xarope.
- Não posso passar antibiótico para uma virose.
- Ah, então o diagnóstico é esse?
- É.
- E a dor?
- É muscular. Tossiu muito.
- O senhor me ouviu tossindo?
Ele amassou o receituário. Jogou a folha no lixo com aparente mau humor. Escreveu outra. Na qual a palavra ‘xarope’ se repetia.
- E o sangue que estou expelindo no cuspe e na urina? O senhor pode solicitar um Raio-X?
Dessa vez, nem se ocupou em me responder. Entregou o papel como quem cumprimenta um inimigo. Com asco. Pressa em acabar com aquilo.
Voltei ao Hospital da Asa Norte. Fiz o exame. Voltei ao Posto da Asa Sul para tentar a avaliação das imagens. Depois de quase três horas de espera, fui atendida. – O que você está fazendo aqui? Está com pneumonia bilateral. Vá direto para o hospital. Vou mudar a classificação de urgência.
Com uma pulseira verde onde estava escrita à mão a palavra “laranja”, passei as próximas seis horas sentada em um corredor de hospital, por onde passavam enfermeiros, pacientes, presidiários escoltados buscando também por socorro. Muita gente e muita categoria de gente. Menos o desejado médico.
Eu chorava. Há muitas horas não comia. A dor aumentava. Pedia que me deixassem ir embora. Coisa que finalmente aconteceu.
Voltei para casa sem atendimento. Acordei de madrugada queimando de febre. Urrando de dor. Não podia me mexer.
Uma amiga conseguiu horário em uma clínica particular para a manhã do dia seguinte (ela já imaginava que a rede pública podia falhar). Com uma consulta era possível arcar. O problema seria uma possível internação. O médico escolhido por ela, tipo anjo da guarda. Eu estava com uma infecção quase inacreditável. Ele se assustou. Eu também. O tratamento podia não ser eficiente. Arriscamos. Aos poucos, melhorei. E segui acompanhada por ele.
Eu era, portanto, da parcela da população que percebeu um diagnóstico errado. Passou horas em um hospital público. Não foi atendida. Saiu de lá para uma consulta particular. Eu era da parcela da população que sobreviveria a um quadro delicado, letal. No qual um minuto a mais ou a menos faria diferença. Estou contando a história. Ano passado eu morri. Mas esse ano eu não morro.