O FEITO DE CHICA
A frase podia dizer nada. Não ter meio. Ou final. Para mim estava perfeita. Quis anotá-la. De tanto querer, não tomei a iniciativa. Meio para não a gastar. Meio para não perder o que ainda vinha sendo narrado. Teste para a minha capacidade de reproduzi-la sem o apoio do caderninho.
- Foi Chica quem me fez leitora.
Remexi-me na cadeira. Pensei que coisa linda era aquela de ter sido feito leitora por Chica.
A frase veio seguida de um questionamento interno. Daqueles que se nota pela direção do olhar de quem questiona.
A confirmação, já sabida, veio por um meneio de cabeça. Estava claro. E certificado.
- Foi Chica quem me fez leitora.
Repetiu.
Chica era a funcionária da escola do interior da Bahia. A mesma escola que não abrigava biblioteca. Como, ademais, todas as outras que a hoje mestranda da Universidade de Brasília frequentou entre infância e adolescência.
Fosse por aquela contundente ausência, a de biblioteca, corria o risco de ter passado boa parte da vida sem saber de livros. De leitura. De literatura. De escrever. De ler. De estudar. De conhecer sua história.
Mas no meio do caminho havia Chica.
Por algum motivo, Chica sabia que fazer uma leitora nesse mundo de meu Deus era como plantar uma muda de baobá. Haveria de se espalhar dali tanta força vigor sombra abraço braço sabedoria silêncio palavra. Haveria de ser raiz que tudo rompe. Haveria de ser copa que tudo abarca.
Fez à menina uma oferta. Ali, na escola, biblioteca não havia mesmo. Mas havia livro. Um tantinho. Guardado como tesouro. Na secretaria. Se ela lesse um e fizesse uma espécie de registro ou fichamento, só para garantir o cumprimento da missão, receberia outro e mais outro.
Sem certezas, a pequena aceitou a oferta. Forjada leitora. Pensadora. Questionadora. Escrevinhadora.
Quando mudou de escola. Perdeu Chica. Mas a semente estava dentro. Procurou biblioteca. Achou livro. Um tantinho. Guardado. Quase escondido. Já sabia como procurar. Já sabia o que queria encontrar.
Tanto tempo separava - o dia em Chica havia definido seu futuro, desse dia de agora.
Diante dos colegas de oficina de escrita criativa, fazia as contas. São 140 exemplares.
Comprados com seu dinheiro. Acervo inicial da própria biblioteca. Com ele, sente-se vingada. Mesmo que ainda guarde certa raiva das escolas com biblioteca nunca frequentadas.
Sem livros não fica mais. Os olhos se acendem. É coisa de quem tem certeza. 140.
Por algum motivo, Chica apagou desfechos que há muito se pretendem imexíveis. A menina da pele escura. Do cabelo crespo. Da distância das sabedorias encadernadas. Fez outro caminhar. E foi Chica a responsável primeira por ele.
