Os olhos do menino brilhavam que só. Que sol.
A diferença entre aquele dia e agora é que já não era menino.
Mas o portal estava aberto enquanto lembrava daquela primeira vez. De novo chegava aos sete anos. De novo era iniciado em algo que faz parte da sua vida, definindo-o até. Delimitando gostos e preferências que extrapolam limites. Escorrem em tudo o que era. Em tudo o que fazia. Em tudo o que gostaria ainda de ser no futuro. Em tudo e todos que é. Que guarda em si. Que dá a conhecer.
Era um recorte. Apenas. Dizia assim porque algo precisava ser dito, decerto. E podia ser qualquer coisa. Algo sobre estar debruçado na janela com olhos que eu não enxergava, mas intuía. Viam longe. Para mim a visão era das costas largas. Desnudas. E me bastava.
No pedaço rasgado de memória, o menino ainda virgem de tantas sensações e descobertas estava no Rio de Janeiro. Na Baixada. Fazia viagem de família. Chance de aventuras insondáveis. Alegria que só. Que sol.
Naquele dia, o convite, para surpresa sua, acolhia um miúdo como era ele naquele tempo. Oficialmente, programa de adultos. Na prática, recebeu indulto de infância e, mesmo sendo noite alta, permissão de fazer parte. Coisas do Tio Pedrinho.
A narrativa inebriada de tantos sentidos e significados – que ainda hoje se davam a apreensões novas que escaparam ao menino – também me colocou ali. E foi a primeira vez que estivemos juntos em uma roda de samba. Ou segunda?
Como pastora que tem o momento certo para atuar, que não pode atravessar o samba, chegar antes, sair depois, segui em perfeita sintonia com as palavras plenas de cadência, condutoras do ritmo daquela viagem.
Agora que eu era parte da plateia, testemunhava a cena. A criança olhava para tudo. Devorava, com fome de anteontem, os sabores todos que podia sorver. Cada instrumento. Cada cadeira de mulher que dançava. Cada mão calejada que fazia soar surdos e tamborins. Cada timbre de voz de povo negro. Cada pele escura que resgatava a batida ancestral. Cada felicidade agora sem grilhões.
Lá debaixo do barro do chão foi subindo a energia até então desconhecida. A criança, eu via, buscava desvendar o que sentia. Súbito, o entendimento. Era convite para dançar.
Como bebê arriscando os primeiros passos, arriscou os seus. Titubeou por pouco tempo. Uma ou duas notas. Foi a primeira vez que viveu aquilo. De se deixar embalar. De dançar uma música. Do começo ao fim. Observando os passos que os pés criavam como se nunca tivessem deixado de fazer aquilo.
Abriu os braços. Abriu um sorriso. Deixou-se abraçar pela exultação. Os olhos continuam a brilhar que só. Que sol. Não caiu no chão. Caiu no samba.