Ele falava manso. Precisava usar as palavras. Buscava interlocutores. Nem sempre as atribuições do momento deixavam o espaço necessário para que discorresse sobre assuntos variados. Sentíamos que nós perdíamos com isso. E quando o respiro se avizinhava, mesmo que nos olhando de banda, cruzávamos o corredor para bater em sua porta e explicar o silêncio de agora há pouco. E, com discrição, deixar que fosse puxado o fio da meada.
Era pausa. Intervalo sem descanso. Ao contrário, tempo de trabalho mental. Impossível manter-se íntegro depois de ouvi-lo. Na saída, juntávamos os caquinhos. Cerzíamos os remendos. Tentávamos encaixes como nos jogos de quebra-cabeça.
Tarde demais. Os ajustes definitivos não eram possíveis. Restavam veios. Rasgos. Espaços. E era aí, no que não se restabelece, que entrava o nosso aprendizado. A nossa inquietação. As nossas sinapses. As reflexões e entendimentos que, como em sessão de psicanálise, iam emergindo aos poucos. Horas, dias depois.
E havia o que não ganhava sossego. Que não tinha final feliz. Nem conclusão. Que apenas se achegava como um grande sinal de interrogação. Ondas caudalosas. O grito por socorro. Debalde. Tarde demais.
Éramos outros. Restava saber o que fazer tendo perdido tanto do que nos compunha. Tendo ganho tantas ferramentas para recomposições. O eco de suas palavras. Em nós. Nós. Desatados. Nós atadas pelo que agora sabíamos. Perdíamos a absolvição pela ignorância. Éramos responsáveis. Parte daquilo tudo.
Ele, o mestre. Exigindo nada em troca de seus ensinamentos. Sem pretensões de cultivar um séquito. Talvez por isso, tinha um. Por ironia, silencioso. Que não fazia uso de manifestos. Adoração impensada. Ritos de passagem. Encontros secretos. Cooptados pela destreza de um guru sem objetos de poder. Ou com o mais poderoso deles. Mesmo que não fosse objeto. Mas radiação. A palavra.
Era tanta gente já transformada. Maior. Acrescida. Ele fingia não se saber raiz. Comportava-se como copa. Frondosa. Acolhedora. Ave emprestando asas para receber assustados filhotes sob seu calor. E já eram tantos. Mas cabia mais um. Mais uns. Em movimento inevitável de expansão.
Ele tinha assuntos preferidos. Entre as interpretações deles ou das polêmicas do momento, trazia novidades. Lampejos. Ou peças do seu museu pessoal. Memórias afetivas. Afetos escancarados. Aos poucos, estávamos todos íntimos de vivências e personagens. Gente de agora. Ou que já não habitava o mundo dos vivos.
Tinha a entonação perfeita. Gestos peremptórios. Fazia perguntas. Deixava algo no ar. Proferia exigências. Veladas. Escancarava conselhos. Enigmas a serem decifrados. Recomendava leituras. Autores. Emprestava. Doava. Livros.
Ele nos contava. Sabíamos da ética. Da comida. Da casa. Dos santos. Da ilha. Dos pais. Das filhas. Da mulher. Do estudo. Dos desafios. Do futuro. Do jornal. Dos conceitos. Das intenções. Do outro. Do algoz. Do que foi feito escravo. De lutas. Verdades verdadeiras ou criadas. Históricas ou recém-paridas.
Sabíamos, mais ainda, éramos instados, a arrebentar correntes, a deixar falar a força do que estava por vir. Aceitar o convite para abraçar o desvario de ser nós mesmos.