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DES(CULPA)

Desprotegida, aparentando medo e assombro, a pequena me olhou. Engraçado como um par de olhos consegue antecipar o tom das palavras que virão. O sentimento que corre por dentro. O silêncio cheio de ruído. Pediu desculpas.

Não dei ouvidos. Estava ocupada em diminuir o tom do grito necessário para vivenciar a dor sentida. Estava ocupada em encarar o que acabara de acontecer e descobrir, então, a sua gravidade.

Não havia corte. Ou sangue. Só um traço vermelho. Um ‘calo de sangue’, diria, aludindo à expressão escutada por mim na infância. Escolhida por adultos para traduzir um certo tipo de machucado. Capaz de deixar um roxeado sob as unhas e de manter aquele espectro por semanas.

Quando uma pedra de gelo protegida por um pano de prato foi usada para amenizar meus ais, quando me senti aliviada por ter sufocado o grito alto, quando me senti de certa forma orgulhosa pela maneira como me mantive calma e gerenciei a pequena crise doméstica, foi então que ouvi. Dessa vez de verdade, o pedido de desculpas. Ele se refez na memória.

- Você não precisa me pedir desculpas, filha.

Aí, aquele olhar de medo e assombro se desfez. Junto com o relaxar do cenho franzido. E a surpresa.

- Não?

- Não. Foi um acidente. Desculpa vem de culpa. Você não teve culpa nisso.

- É mesmo. Respondeu aliviada. Depois de uns segundos de reflexão.

Eu tentei reconstituir os fatos. E explicar-me o caminho percorrido para que chegasse àquele ponto. Busquei o erro camuflado no gesto, repetido há alguns dias, de usar uma tesoura de uso culinário para quebrar a casca de uma avelã – naquela curva cheia de dentes que tem essa missão.

Não havia mistério. Na pressa, hábito ou, na segurança que a repetição nos lança, não reparei que a mão estava mal posicionada. Quando a força sobre a tesoura rompeu a resistência da casca, meu dedo ficou preso no fechar dos cabos do utensílio, já reconhecido como de certa periculosidade.

Veio então o que se seguiu ao incidente. Silenciei. Olhei a extensão do estrago. Dei-me conta da não necessidade de ajuda profissional ou primeiros socorros mais contundentes. Uma pedrinha de gelo apenas. E o escrutínio do gesto em falso. Tudo nos conformes.

O pedido de desculpas, sim, me machucou. Soou símbolo. Não consegui dissociá-lo de questões mais profundas. Como o peso da culpa. Desde tão cedo se apresentando.

Fazendo com que uma criança, do gênero feminino, fosse atingida pelo sentimento que a constrangeu a ponto de desculpar-se por uma situação em que o seu envolvimento começava e terminava no fato de ter solicitado a compra de avelãs, em ida ao supermercado.

Que aprendamos, desde sempre, a não nos desculpar por coisas que nem fizemos.


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