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QUER VER A SORTE?

Da janela vi o que parecia se mover. Como uma sombra. Apurando o olhar, percebi que se tratava de uma pessoa. Mais que isso, apesar da distância e da escuridão da noite, eu sabia quem era a pessoa.

Aos poucos, transformei os contornos do que seriam suas roupas, nos tecidos e peças que eu sabia que usava. Era como se estivéssemos frente a frente agora.

A percepção daquela intimidade me fez bem. Ao tempo em que corrigi o sentimento. Não éramos íntimas. Ao contrário, nada me ligava a ela. A não ser o fato de saber quem era. E a capacidade de discernir isso do alto de uma janela.

Ela se afastava com passos rápidos até sair do meu campo de visão. Eu, por minha vez, permanecia imóvel. A imaginação e a memória, elas sim. Saíram por aí até me fazer chegar aos meus primeiros anos em Brasília.

Ela estava neles. Portanto, há quantos anos eu via aquela mulher, autointitulada “Baiana”?

Quantas vezes já havia dito a ela sentenças como “não, obrigada”, “hoje não”. E negativas do gênero?

Era isso que ela oferecia diariamente em bares e ruas da Asa Norte. A sorte. Ou a possibilidade de conhecê-la, mesmo quando a leitura trouxesse maus augúrios.

“Quer ver a sorte?”. A voz inconfundível ecoava na minha mente.

Quantos anos teria agora? Parecia a mesma. Os quilômetros. Percorridos a pé. À noite. Solitariamente. Eram muitos mais.

Era apenas o que eu sabia. Ou arriscava achar que sabia. No meio disso, a realidade. A história de vida. Percalços. Vitórias. Escolhas. Para os quais nunca dei ouvidos.

Era corajosa. Mas o que me saltava aos olhos era a vulnerabilidade. Enxergada somente agora. Lá do alto.

Uma mulher. Sozinha. Singrando quadras. Entrando em bares. Ofertando uma pergunta – feita de forma tão pouco enfática que já trazia embutida a resposta possível. Negativa.

Poucas vezes. Talvez nenhuma. Quantas, afinal? Eu vira alguém aceitar o convite? Oferecer a mão e suas linhas para receber em troca palavras que não se garantiam alvissareiras?

Abrir mão dos prazeres notívagos para olhar nos olhos de uma vidente, trocar confidências, sussurrar segredos indizíveis, jogar as cartas da própria vida na mesa do bar.

Era tentador. Ouvidos disponíveis, afinal. Mesmo que fossem de aluguel barato.

Melhor não cair na tentação. Seguir enviado mensagens virtuais de autores desconhecidos. E deixar o futuro ao Deus. Dará.

Parecia óbvio que a capacidade de ler a sorte não a aproximara da sorte. Ou pelo menos da abundância.

Maltrapilha ela. Surradas cartas.

Passos lentos. Indolentes. E a pergunta que insistia: Quer ver a sorte?

Não eram palavras ditas. Mas cantadas. Em desafino. Em desatino.

Quem em sã consciência diria sim? Melhor dizer não. Obrigada. Embriagada.


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