Muitas discussões têm sido feitas sobre o futuro do jornalismo.
Será que dá para pensar de forma diferente no gancho, na novidade, no lide, no título, na manchete? Confesso não estar muito antenada às discussões acadêmicas e/ou práticas sobre esse tal futuro.
Mas o presente é o que me deixa assim. Cansada. Esgotada. Não preciso ir longe. Nem profundo. São os ganchos, as novidades, os lides, os títulos, as manchetes. A escolha disso tudo que me surpreende tanto.
Leio sobre Fernanda, 40 anos. Moradora de rua morta em Copacabana, no Rio de Janeiro. O tiro que impediu que acordasse mais uma vez, pois supostamente morreu dormindo, não como um passarinho, como se diz, mas como uma fera abatida (leão sem dentes), virou notícia das boas (no critério audiência) depois que foram descobertos seus algozes.
Gente bem, como diriam os paulistanos. Ou nem tanto. O jovem estudante de medicina. O atleta violento.
Juntaram-se para apertar o gatilho certeiro que extirparia a vida de Fernanda ao tempo em que julgavam extirpar mais uma pessoa indesejada das calçadas do bairro.
O fato é que só após sua morte, Fernanda ganhou esse potencial midiático. Dizem agora que era elegante, discreta, sem vícios, comprava, pagava e preparava sua comida. Falava pouco. Mas em três línguas.
Era limpa. Tomava banho. Areava as panelas. Não só as suas como as das madames. Assim é como figura soberana em espaços privilegiados de grandes jornais/portais brasileiros.
Era negra. Digo eu. Isso seria suficiente para colocá-la em enunciado de poucas linhas. Por sorte havia imagens. E ela “tinha porte nobre”. Falava três línguas. Teria sido casada com um francês. Receberia uma pensão. Não pedia esmolas. Pintava o rosto com tintas exageradas. Uma delas, de cor branca. Como o pó de arroz clareador das antigas.
No mesmo texto em que seu porte é destacado, um garçom a define (e a gente lê ouvindo nas palavras um tom de desdém) como alguém que se comportava como uma dama. “Quase esnobe”, diz. Como se sua condição não permitisse uma característica tão afeita a gente com dinheiro. Mas apesar disso, continua ele, parecia ser “gente boa pra caramba”.
O que colocou Fernanda (a sua morte) em tela foram seus modos supostamente aristocráticos. Eles dariam um aval para que a moradora de rua se instalasse na nobre Copacabana.
Os assassinos, a investigação exitosa, em um primeiro momento capitanearam a divulgação pois “deixaram os moradores do bairro chocados”. Mas logo o gancho migrou para a vítima.
Nos relatos colhidos pelos profissionais da imprensa não apareceu amigo. Colega. Companheiro da lida da vida na rua. Um diálogo que tivesse sido travado com ela.
Só as falas de quem a olhava. Por sorte, a via. Desse jeito. Nobre. Esnobe. Sem vícios. Chamativa. Vaidosa – usava maquiagem, protetor solar, essas coisas.
A dama. Evitada por todos. Ao que parece.
Quase esnobe.
Morreu dormindo como o passarinho que talvez fosse.
Enrolada em papelão.
Na esquina da rua Duvivier.