Quando eu voltei havia flores no canteiro.
Antes delas, dia anterior, avistei duas mulheres. Uma delas, mais senhora. Lágrimas nos olhos. Olhar perdido que eu conheço. De quem pergunta. De quem perscruta. De quem não acredita.
Quando eu voltei já não mais sozinha tive que encontrar resposta outra para as flores no canteiro.
É homenagem, filha.
Omiti o luto. Omiti a dor. Omiti o fato. O fatídico. O horror.
Era homenagem também. Mas do tipo que não quisera ser feita tão cedo.
E era tão cedo para ele. Menino ainda. Apelido no diminutivo. Raulzito.
Antes que eu voltasse recebi, pelo celular, a notícia que dava conta de sua ida.
Palavras escritas para falar de tragédia derramada. No asfalto. Vida esvaída. Ida.
Vi a manchete. Abri o texto na volta. Achei estranho que fosse em ambiente tão urbano. Tão perto da minha casa. Fiz um esforço para recompor a cena. Parecia tão passível e possível de ser evitada quanto todas as cenas de morte. No trânsito.
Lembrava que não era a primeira. Sabia que não seria a última.
Justifiquei como acertado o meu medo de desbravar o trânsito em duas rodas.
Nunca o fiz. Fico nas ciclovias como amadora que sou. Todas as vezes em que me pergunto se teria coragem, ouço notícias fictícias sobre minha própria ida. Triste que seja assim.
Ninguém sabe se é coisa que se evita. Da qual se escapa.
A dor da gente não sai no jornal.
Bobagem minha.
Engarrafada na vã tentativa de moldar o destino. Desviar. Seguir por atalhos. Parar ante o sinal vermelho. Seguir no verde.
Uma amiga fez chegar a mim e – ainda faz – notícias de Raulzito. Também vi seu nariz de palhaço. Sua promessa de ser fotografado junto a outra amiga, para sempre, como havia feito nos últimos dois anos.
Ele, me contava ela, se despediu de alguns amigos com a mesma trágica e irônica morte. De quem segue lutando pelo que se acredita. Uma luta de desiguais. E ele era a prova.
Sabia disso mas sonhava. Acreditava. Tinha fé.
“Qualquer dia desses, sou eu” – desafiava.
Sabia do risco. Mas decerto não acredita na inexorabilidade da chance.
Não se escondeu. Não apostou no pior. Devia estar pensando coisas boas e leves. Suave na nave, como soube gostava de falar.
Mas suavidade é coisa para poucos. E a dele foi tolhida. Para deixar no lugar a dureza de uma vida que corre não se sabe para onde. O homem lobo do homem.
Encontro um alento tosco com jeito de contrário. Morreu onde e como viveu.
Fazendo do seu corpo, da sua mobilidade, da sua liberdade, uma grande bandeira ao vento – do que podia vir a ser. Do que lutaria por tanto tempo ainda para ver acontecer.
Parou ali. Na 406/7. Parou ali. Seu coração. No lugar, uma bicicleta branca.
Escultura. Arte. Protesto. Lembrança.
Quando eu voltei havia flores no canteiro.
E conheci um pouco da história escrita por um menino Raul.
Raulzito sobre rodas. Círculo vermelho no nariz. Sorriso enorme. Coração maior.
Mas a vida não é brincadeira.
Se foi Raulzito.
Seu sonho ficou.