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BOLA NA REDE

Cada um com sua loucura.

Se de perto ninguém é normal.

Pensava nisso com aquiescência bem-humorada enquanto tinha vontade de entabular conversa.

Demorava a fazê-lo. Isso também fazia parte do ritual.

Não sabia por onde primeiro puxar. Ainda não tinha nomeado a interlocutora. E isso dificultava a saída das palavras de aproximação.

Olá. Tudo bem?

Podia ser.

Mas não parecia ideal.

Sentia-se tímido.

Fazia tempo que estava lá. Como esquecida.

Como podia de repente criar uma atmosfera de intimidade?

Era como levar um bicho para o abatedouro.

Cruzar o olhar com a caça pouco antes do disparo único. Fatal.

Decretar-se culpado antes mesmo do veredicto final.

Era como vislumbrar o reflexo no espelho – cínico – como só podia ser em uma ocasião como aquela.

A todos era dado o livre arbítrio. Escolhera ficar. Em silêncio. Bochechas rosadas.

Rechonchudas. Despudor em existir. Em deixar-se ficar. Como esquecida.

Não era estranho que não tivessem ficados amigos antes.

Sequer se cumprimentado.

Não era assim que funcionava quando tudo parecia fazer sentido.

Mas a passagem do tempo mudava também aquela relação.

Doía vê-la.

Machucava antever seu destino.

Queria que fosse diferente. Mas a vida. A correria. A inapetência. Os apelos da rua.

Pudesse escolher e encontraria parceiro para desferir o golpe final.

Assim, não seria obrigado a ser algoz.

A dar o caso por encerrado.

Usar as próprias mãos.

Era o que havia feito semana passada.

Mas dessa vez, era obrigado a admitir, estava mais difícil.

Não sabia a razão.

Quando decidiu chamá-la por Marília parecia ser tarde demais.

Ou podia ser que mudasse tudo.

Também acreditava nisso.

Caíra na tentação.

Agora seria mais difícil consolidar o ato. A essas alturas inevitável.

Fariam companhia um ao outro por uns dias ainda.

Olha, Marília, não me leve a mal.

Nem chegou a dizer.

Isso exigiria comprometimento.

E já então usava óculos escuros.

Ajudavam a fingir que não via.

Não sabia por que precisava conversar.

Ao menos um pouco.

Batizá-la antes da morte era justo. Ato de caridade. Ainda mais agora que se reaproximava da fé. Da religião.

Chamá-la pelo nome próprio ainda que não apropriado amenizava a cena que estava por vir.

Podia não pensar mais nisso.

Deixar passar mais alguns dias.

Seria uma estratégica mudança de foco.

E nem seria tão forjado.

A correria. A inapetência. Os apelos da rua.

A promessa de que até lá os rumos poderiam ser outros.

Podia desacelerar. Sentir fome. Usar o que havia em casa.

Isso não aconteceu.

Mais alguns dias e sua existência não se ampararia em nenhuma justificativa.

Outrora rosada, pálida.

De viçosa, a murcha. Encarquilhada.

Era chegada a hora.

Bom dia, Marília. Tudo bem? Você agora vai embora.

Quase a beijou.

Sentiu ganas por uma despedida menos asséptica.

Com a mão certeira. Segura. Fez o movimento. Como se fosse jogador de vôlei fez o lançamento.

Você agora vai embora.

Da geladeira para a lixeira.

E a maçã rolou mundo abaixo.

Como bola na rede.

bola na rede.


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