O médico. Músico. Artista. Ficou ressentido.
Tentou doar livros. Não conseguiu.
Escreveu sobre o estranhamento em ser ignorado por vários destinatários anônimos para quem enviou missiva digital, oferecendo, gentilmente, dezenas e dezenas dos melhores exemplares de escritores de solos brasileiros e estrangeiros.
Quem o conhece sabe que é leitor de boa cepa.
Capaz de não ter na prateleira obra considerada um erro. Ou de mau gosto.
Deve ser um dos clientes mais assíduos de famosa livraria muito bem instalada na Avenida Paulista.
Leitor contumaz, também gosta de presentear obras literárias. Iniciar crianças no mundo da leitura. Ofertar possibilidade de aperfeiçoamento profissional. Tirar alguém do buraco com autoajuda.
Antes de adquirir mais um, debruça-se sobre longa pesquisa. Está sempre muito bem informado sobre novos autores, lançamentos, obras primas ou raras.
Desde muito jovem é assim.
Leitor.
Logo, receber parte de sua biblioteca seria como pôr as mãos em um baú do tesouro.
A possibilidade estava aberta a heróis ou heroínas. Aventureiros que em troca teriam apenas que dizer um sim.
E enviar um mensageiro com espaço o bastante para levar de volta carga tão preciosa.
Pois não veio resposta.
O médico. Músico. Artista. Ficou ressentido.
Decidiu compartilhar seu desapontamento nas Redes Sociais.
Narrou o ocorrido.
Anexou ao relato fotos das obras que distribuía.
Dispostos como cartas de baralho, lado a lado se acariciavam de Umberto Eco a Contardo Caligaris, de Jô Soares a Virgínia Woolf, segundo sua própria classificação.
Inconformado, dispara: ninguém quer!!!
Tentando achar uma razão (ou culpado) para tal indiferença, desabafa:
Às vezes sampa é mais árida do que o sertão!
O médico. Músico. Artista. Deixa o ressentimento e busca contornar a questão.
Refaz o convite. Dessa vez amplificado pelos infinitos decibéis do FaceBook e uma ressalva: não quer que o receptor seja pessoa física.
Apenas organizações não governamentais estariam liberadas para receber tamanha dádiva.
O negócio se agitou.
Foram muitos comentários. Réplicas. Tréplica.
Teve gente dizendo que podia virar ONG. Gente dizendo que mesmo sendo gente queria os livros. Gente encomendando remessa para o exterior. Gente apontando o autor de sua preferência. - Dá para reservar?
Inúmeras propostas decentes. Indecentes. Divertidas.
Nunca a resposta certa.
Com a palavra mágica.
Enigma decifrado.
A questão não era tanto a personalidade jurídica dos pretendentes.
Mas a intenção do pretenso doador.
Que eu entendia muito bem.
Bem ao seu modo pontuou as negativas.
Colocando cada um no seu lugar.
Agradecendo com gentileza.
Mas registrando com firmeza o não.
Eu daqui fico torcendo para realizar seu intento.
Com um objetivo nas entrelinhas.
Tão importante quanto a doação.
O desapego.
O movimento.
O esvaziar.
O organizar para organizar-se.
Devagarinho pra poder caber.