O som agora é outro.
Como serão os hábitos. As possibilidades. O que é visto. O cheiro exalado.
Amanhã mesmo a grama é verde.
Hoje mesmo o cheiro de roça. E de cidade cheia de óleo derramado.
Deitada, escuto-o com o prazer de quem recebe visita esperada com ansiedade.
Com chá e biscoitos. Bolo quente. Mesa posta.
No lugar da conversa, o silêncio.
Para escutá-lo.
O som.
Ou barulhinho bom.
Da chuva.
E já se esquece o que veio antes.
O nariz sangrando. O lábio fatiado. O abafado. O mal estar.
O desejo pelo fim da seca.
A espera pelo cair das águas.
Olho pela janela e vejo as primeiras poças.
O barulho que fazem esmagadas pelos pneus dos carros.
O reflexo irradiado pelas luzes dos postes.
A umidade volta.
A vida ganhe ares de normalidade.
Agora não são mais cento e tantos dias.
A notícia que vai para os jornais é outra.
Sobre comemoração.
Sabemos que virão os lamentos. Árvores caídas. Inundações. Carros perdidos. Acidentes. Trânsito parado.
Não é culpa da natureza. Mas dos homens.
A natureza só cumpre o ciclo. Atende ao pedido. Molha e restaura esses calangos todos nós. Áridos movies a nos mover com dificuldade. Abrindo espaço para respirar. Tateando – como em nevoeiro – o invisível em busca de um alento. Ar lento.
Agora, o imprevisível.
A consulta à moça virtual do tempo.
Nada mais é certo.
Piquenique. Aniversário. Casamento. Caminhada. Corrida. Encontro. Rotas. Intenções.
Tudo pode mudar a qualquer momento.
Acaba a temporada das festas de rua.
Agora, tudo pode acontecer.
Ovo para Santa Clara.
Caprichar na fé. Repetir a oração. Vai chuva. Vem sol.
Se a razão for muito urgente.
Entrar em casa. No bar. No restaurante. Na loja. Sob a marquise.
Nunca esquecer o guarda-chuva.
Usar galochas. Ou botas. Sapatos fechados.
Nada mais desalentador do que pé molhado em chuva e lama.
Dedos encarquilhados. Unhas escuras. Frio.
Trocar o limpador do carro.
Verificar antes se está em bom funcionamento.
Encostar no posto de gasolina. Esperar a força das águas perder o vigor.
Reforçar o estoque de velas. É certo que a energia elétrica dê mostras de debilidade.
Deixar carregados os equipamentos eletroeletrônicos. Garantir a comunicação caso a energia demore muito tempo para voltar.
Mandar um palavrão bem gritado para o motorista tresloucado que ignora o crime de trânsito. E enfie o pé no acelerador para ver a água turva esguichar em inocentes pedestres.
Usar o veículo para arremessar, sobre os pedestres ou veículos, água ou detritos é infração média, passível de multa e perda de quatro pontos na carteira de habilitação. Diz o código.
Tempo dos ambulantes. Serão as figuras mais desejadas. Onipresentes.
Dez reais e uma proteção inócua e perecível. Capaz de durar apenas até a próxima ventania. Mais investimento, maior a garantia.
A moda não escapa. Guarda-chuva e sombrinhas fashions vão desfilar por aí.
Os Achados e Perdidos vão se abarrotar deles. Conhecidos pela sua capacidade nata de se deixar esquecer.
Os funcionários do serviço de limpeza vão se cansar da luta invencível contra a água.
Tempo do prazer de escutar.
De deitar. Se recolher. Se encolher.
Que venham os cobertores.
Chuvas vão cair.
A chuva molha tanto.
Foto: Gilberto Soares