Passou rápido o tempo.
Não era fácil de perceber.
Sentia-se a mesma pessoa. De há muito.
Tinha a mesma essência.
Sim. Era uma mulher.
Nem sempre fora.
Lembra-se de muita coisa da infância.
Não foi um mar de rosas.
Preferia ter esquecido algumas partes.
De quando apanhou. De quando sofreu uma tentativa de abuso. Uma, não. Duas.
Das reprimendas por fazer xixi na cama em fase não usual.
De quando foi manipulada por adultos para fazer coisas que não sabia teriam consequências para outras pessoas.
Era inocente demais para ser criança.
Ou o mundo era feio demais na lida com os pequenos.
Tudo lhe doía. Não fosse na carne, na alma.
Criou universo próprio onde pudesse se esconder. Era feito de silêncio. E observações.
Nele cabia arte. Desenhava. Tocava. Pintava. Fazia roupas de bonecas. Cozinhava. Dançava. Escrevia.
Tudo era escape. E salvação.
O mais ia guardando.
Preferia ter esquecido algumas partes.
Mas era sensível demais para não tatuar suas experiências em cada parte do corpo e da memória.
Nada disso trazia visível.
Logo agora que tinha também dores de amor.
E de perdas.
Concluía – a vida, ao passar, deixava um rastro de subtração na soma e na sombra do tempo.
Gostava de se olhar no espelho.
Era objeto inseparável. Ainda é.
Dos menores que levava na bolsa até os enormes onde pode se olhar de corpo inteiro.
É neste encarar (se) que descobre muita coisa.
Quanta verdade podia caber em um reflexo?
Era engraçado. Estava ali. Mas não estava.
Não via as rugas. Os peitos sem o vigor de antes. A pele perdendo elasticidade. Ou ganhando. A mudança na arcada dentária.
Era ainda a menina que enxergava.
Era a jovem senhora que não via.
A prova estava nos documentos. O ano em que nascera. Podia ter sido há dez mil anos. Atrás.
Ou agorinha mesmo.
Aliás, renascia diariamente por exigência da vida.
A bagagem que carregava variava de peso.
Podia ser leve. Ou conter toneladas.
Podia empurrá-la com um sopro. Ou chamar carregadores.
Largá-la em uma esquina. Por inútil que era.
Podia sorrir. E bailar. Jogar-se no chão de tão plena. Voar.
Podia sucumbir. Deixar-se morrer. Mas você é duro, José.
Fênix.
Gosta de ser assim.
Inteira.
Luz. Sombra.
Ação.
É diante do espelho que ainda carrega ou procura ou encontra que se perscruta.
Do que não vê nem pergunta.
Intui.
Bruxa que é.
Vira-se de lado. Revira-se.
Vomita.
Volta do avesso.
Olha os cabelos.
E os pentelhos.
Se detém.
No corpo esguio sem idade as décadas se abrem.
Nunca imaginou a cena.
Sequer acreditou que aconteceria.
Segurou o fio e quis arrancar-lhe.
Você é duro, José.
Ironizou.
Deixou para lá.
Olhou de novo.
Assentiu.
Sorriu.
Havia um pelo branco.
Ela não.
Mas a sua buceta.
Amadurecera.