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O PODER DA CASCA

Conversávamos sobre a filha. Não sabia ainda andar de bicicleta. Nem pular corda.

Não sei se discutimos alguma estratégia que pudesse fazer irromper esses aprendizados.

Mas a minha resposta veio baseada na percepção de que coisas tão simples e naturais nos tempos de cada um, mais velho, agora demanda energia, coragem, logística, equipamentos.

Lembrei de cada pequeno que vejo nos finais de semana nos parques ou outros espaços públicos da cidade e que estão aprendendo alguma nova habilidade, dessas muito típicas e necessárias na infância.

Como andar de bicicleta.

Eles são segurados, apoiados, ouvem reprimendas inacreditáveis ou muitas palavras de incentivo. Ou as duas coisas – dependendo do humor e da carga de boa vontade ainda restante em dias assim.

Usam capacete. Joelheira. Cotoveleira. Tênis apropriados para a ocasião. Camisetas que impedem a entrada de raios solares nocivos à saúde. Óculos escuros.

Até saírem rumo à aula a céu aberto, muita água deve rolar entre as quatro paredes de casa.

É o estresse. O atraso. A seca. O calor. A hora passando.

Lembrei que nos tempos de cada um, mais velho, devia ser bem diferente. Porque todos os relatos nostálgicos vêm vazios de dificuldade.

Cheios de leveza.

Ensinamentos transmitidos pela vizinhança. Compartilhados entre irmãos, primos, vizinhos. No meio da peraltice. Das boas histórias para contar no futuro.

Eram transgressões às ordens maternas e paternas que levavam todos às ruas, tantas vezes de terra batida.

Era esquecer a hora para ouvir o grito indefectível: tá na hora de entrar.

Ninguém queria. Nem se contentava. Nem ia para casa.

Ia para a casa do outro. Porque lá é que a comida era boa. E era possível fazer coisas que em casa eram proibidas ou limitadas. Como ver um filme de censura não apropriada ou dar de cara com um brinquedo tipo ‘sonho de consumo’.

Eu peguei carona na infância dos meus irmãos mais velhos. E eles fizeram o mesmo. Com doze filhos isso era moleza.

Não tenho muitas aventuras. Não que eu lembre. Não tinha turma grande. Nem vizinhança. Morávamos bem longe da cidade e dos bairros mais chiques onde estariam os colegas de escola.

Mesmo assim tive muitas feridas nos joelhos.

Lembro com orgulho das tantas que vi brotar. Secar. Morrer.

Aprendi muito com elas.

Sobre seu ciclo.

Suas fases.

Sua dor.

Seu ardor.

Entendi quando estavam cicatrizadas para poder cutucá-las sem risco de vê-las renascer sob gotas de sangue e carne viva.

Não podia me deixar enganar por aquele quadriculado de pele ressequida e grossa.

Seguro era observar a textura e a cor da pele que vinha por baixo para substituir a avaria. E ver se lá no meio ainda estava presa.

Acompanhar sua metamorfose até a cura.

As cascas de ferida têm poder.

E muito a ensinar.

Mas os joelhos das crianças andam sãos.

E salvos.


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