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AUTOPERDÃO

Tenho uma meta diária. Simples. Desafiadora.

De segunda a sexta-feira deveríamos estar, eu e minha filha, às 7h30, na escola dela.

Esse é o horário de entrada. E quando ele bate nos ponteiros do relógio, um funcionário faz soar um gongo. Aquela vibração grave lembra que é hora das pernas miúdas se encaminharem à sala.

A minha meta diária simples desafiadora é ouvir o gongo.

Já não sei mais o que fazer para cumpri-la.

As dificuldades são muitas. Mutáveis.

O que funciona hoje se faz inútil amanhã.

Já ouvi conselhos. Deixar as mochilas (precisamos de duas – uma para o material necessário às atividades do contraturno) prontas na porta.

Já criei artifícios vários.

Já diminui a marcação do despertador de 6h para 5h50. E desta para a atual 5h35.

Entro em estado de correria e torpor.

Preciso me aprontar. Aproveitar algum buraco na agenda doméstica para colocar algo no lugar. Roupa na máquina. Pratos na pia. Esvaziá-la.

Volto ao quarto da filha. Procuro estar serena e carinhosa a maior parte do tempo.

Canto. Dou massagem. Recito poemas. Saúdo o céu e o sol.

Quando tudo vai bem, ela sorri. Puxa o cobertor e se enfia em seu lugar favorito. Entre o colchão e a parede.

Quando nada dá certo, ela me pede silêncio. Diz para eu calar a boca. Minha cantoria é irritante. Ela está com sono. Cansada. Culpa minha. Não a chamei “às seis no ponto”.

Pobre de mim.

Vejo-me feito formiga em véspera do inverno.

Para lá e para cá – matutando estratégias.

Tudo isso e ainda esqueço a chinela. A toalha. O maiô.

O casaco.

Esquecer o casaco me faz de uma mãe diligente a um fracasso de cuidadora em dois tempos.

Mas é que eu estava no calor dos acontecimentos.

Como poderia supor ou saber ou sentir ou lembrar que lá fora correm 15 graus, no máximo, nos termômetros matinais?

Meu corpo já está no meio da tarde. Quando os números vão chegar aos 34 com facilidade.

Meu corpo está no olho do furacão da missão simples desafiadora.

Já no carro, finalmente, ela me pede para fechar os vidros.

Nem chegaram a ser abertos.

Percebi que, fora da minha temperatura corporal, a vida pedia agasalhos.

Pensei no que havia na mochila.

Uma jaqueta. Quentinha. Ainda assim, jaqueta. Sem mangas.

Vi, como em sonho, o casaco em cima do sofá.

O que, meus sais, me fez não pegá-lo? Mesmo que ficasse sem uso. Mesmo que fosse rejeitado como acontece sempre?

Seria meu álibi.

Transformaria minha falência em sucesso.

Deixaria livre meu coração.

Chegamos.

Dessa vez não ouvimos o gongo.

Mas usamos dos dez minutos de tolerância para não perder a rotina/roda inicial.

A professora ficou preocupada. A menina tinha os braços arrepiados.

Eu procurava não internalizar a culpa. Havia a jaqueta.

- Alguém tem um casaco a mais para emprestar para a amiga?

A formiga não era mais eu. Multiplicara-se. Eram muitas. Parecia mesmo formigueiro.

De repente, choveu roupa de frio.

E solidariedade.

Perdoei-me.


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