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VIDA TRANSFORMADA

Algo havia furado meu bloqueio de alma zen.

A determinação de me manter sã pelas vinte e quatro horas do dia.

Minha fórmula de vida plena – mistura do Jogo do Contente, de Pollyana e do Só por Hoje, dos Alcoólicos Anônimos.

Eu os julgava consolidados em mim porque estava praticamente palestrando sobre o seu poder – embora para plateias mínimas – compostas por um, dois. No máximo, três amigos.

Não entendo de onde vem a desestabilização. O descontrole. De jeito assim tão instantâneo e avassalador.

Em um segundo ou menos lá se vão horas e horas de aprendizado e reformas íntimas. Dedicação plena.

Saí pelas ruas da cidade de cenho franzido, certamente. Coração levemente acelerado. Mente inquieta e engaioladora de todos os males advindos dos pensamentos. O contrário de tudo. O contrário de tudo. Reclamava. Talvez em voz alta.

Com raiva. Com raiva da raiva.

Até ser iluminada. Como se traspassada por um raio. De luz. De alegria. De inspiração.

Ante o sinal fechado, vi atravessar bem em minha frente, embora estivéssemos usando meios de transporte diferentes, eu, carro, ela pernas, uma louca.

Deus do céu, como são imprescindíveis a uma cidade, os loucos.

Debrucei-me sobre a direção. Não queria perder os detalhes.

Mas sequer pude captá-los todos. Via o seu perfil e agora que cruzou a pista, suas costas.

Lembrei-me de Maria Grampinho, cuidada, alimentada, hospedada nos porões da casa de Cora Coralina. Em Goiás.

Quem mais poderia confiar tanto na magnitude de uma mulher louca do que uma mulher igualmente desajuizada. Aos 14 anos começou a escrever. Teve seis filhos. Aos 76 publicou o primeiro livro. Fez doce. E linguiça. Plantou flores. Aos 50 se sentiu transformada - perdeu o medo. Aprendeu a viver. Morreu aos 95. Recebeu prêmios e condecorações. Inscrita na literatura nacional.

Eu não sei o grau de sanidade daquela que atravessava a rua. Chamo-a de louca – A mulher louca – porque me convém.

E nisso não há demérito. Nem desabono. Ao contrário, admiração e alegria.

A sua passagem efêmera me fez recobrar o centro. Sorrir. Lembrar de Cora Coralina. Lamentar a ausência de uma câmera, imprescindível naquele momento (tive que me contentar com o que pude captar com as vistas já desembaçadas). Puxar na lembrança todas as figuras do tipo que eu conhecera. E as que não tive o prazer. Mas sei que existem. Ou existiram.

Onde havia ódio a Mulher Louca trouxera amor.

Brasília andava carecendo de figuras assim.

Os andarilhos que se nos apresentam vêm desprovidos de poesia. E beleza. Não retratam mais do que degradação. Não geram muito que não distanciamento. São agressivos. Almas penadas vagando em busca do nada. Ou de drogas. Ou de uma moeda. Para as drogas. Seu alimento, tantas vezes.

Aquela tinha um quê de sábia. De aprendiz. De graciosa. Como ademais são todas as mulheres loucas.

Sua saia era feita de camadas de tecidos e plásticos variados. Carregava uma mochila de um personagem infantil. Amarelo. Seria um Minion ou um Bob Esponja ou um Banana de Pijama? Não tenho certeza.

Estava entreaberta. Abarrotada. De onde se viam pedaços escapulindo. De roupas? Brinquedos?

Suas alças eram reforçadas por muitas outras. De texturas e materiais variados.

Na cabeça um chapéu artesanal. Esse me encantou.

Tinha folhas de papel. Papelão. Objetos de plástico.

Em alguma outra parte do corpo apareciam palavras em outros suportes. Revistas. Jornais.

Sinal verde.

A mulher louca que há em mim saudou a mulher louca que atravessou.

E eu já era outra.

Vida transformada.

Foto: Reprodução/Laboratório de Arte/Vida


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