Vejo o vento.
E vejo Paulo.
Na verdade, sinto o vento.
Posso também escutá-lo.
Vejo as consequências de sua passagem.
Arrasta a terra vermelha e cobre com ela tudo que estiver na frente.
Precipita um outono no Cerrado que convencionei chamar de neve.
Cai do céu. Nos faz olhar para cima. Desce em um balé cheio de nuances que vão do amarelo opaco, queimado, ao verde vivo que sucumbiu.
É agressiva. É terna. A cena.
Vejo Paulo. Ainda que não esteja lá.
Por ele se ter colado a ela, a cena.
Por minha memória, sempre tão cheia de desídia, ter decidido não abrir mão daquilo que considerou (e eu também) como uma grande descoberta.
A maior daquele dia. Deve ter sido. Faz mais ou menos um ano.
Paulo começou a perscrutar o terreno em busca de algo que eu não entendia ainda o que era.
Amassava as folhas secas com sua pisada. Mesmo que cuidadosa. O que ele buscava era frágil. Podia não suportar o peso do seu corpo. Podia crepitar como a folhagem/piso/cobertura da qual não se livra com facilidade nessa época do ano.
Comemorava cada vez que conseguia mais um. Partia aquilo ao meio. Descartava um lado. O outro guardava no bolso.
O acompanhei na coleta e pouco depois já eu me abaixava para procurar as preciosas sementes de mogno.
Aquele mogno famoso? Caro? Que dá vida a tantos móveis e utensílios enquanto ele mesmo perece rumo ao transformar-se?
Descobri que Paulo morava em uma casa (é uma notícia que me faz bem – gente morando em casas). Que havia um terreno grande lá, quase chácara. Que naquelas terras ele produzia sementes e mudas.
Passou-se um ano.
Voltaram os ventos.
E flagrei Paulo naquele movimento de outrora.
Abaixando-se para coletar as sementes do mogno que logo se transformariam em mudas e poderiam virar árvores dependendo da vontade e empenho de quem recebesse o brotinho dentro do saco preto.
Fiz o mesmo.
Sozinha.
Foi então que vi.
Vi gente.
Na semente.
Vi mulheres em prece.
Mãos postas.
Fé na vida. No homem. No que virá.
Vi procissões.
Vozes agudas. Chorosas. De beatas.
Segurando o véu.
Vi grávidas.
Vi retirantes amontoados.
Fugindo da seca tão seca quanto o seu corpo marrom.
Crepitando de sol por dentro.
Frágil e quebradiço como a massa do Cavaco Chinês.
Crivado por tons dourados.
Profundidade. Luz. Sombra.
Eram obras de arte.
As Madonas.
Cuidando. Segurando. Ninando. As sementes-frutos-filhos.
Futuro.
Presentes.
De Paulo.
Foto: Paulo de Araújo