O ditado popular alerta: “Cada um sabe onde o sapato aperta”.
Para ela, mulher simples, moradora dos arredores, da periferia, do espaço à margem do centro do poder, isso fazia muito sentido.
Ela sabia onde o sapato apertava.
E era mais simples do que as diversas apreensões que o dito podia evocar.
O seu sapato apertava era no pé mesmo.
E a simplicidade acabava aí. Porque resolver a questão não estava sob sua alçada.
Não pense que aconselhá-la a trocá-lo, a ficar descalça, a usar um modelo mais confortável, ajudaria.
Ela bem queria que fosse assim.
Mas o calçado era uma espécie de galocha emborrachada, quente e apertada, que fazia parte do seu uniforme de trabalho.
Eram oito horas diárias, a maior parte de pé, circulando, indo de um lugar a outro, segurando baldes, vassouras e outros equipamentos de limpeza.
Eram cinco dias na semana varrendo, lavando, passando pano, reparando algum dano causado por incidentes em xícaras ou copos derramados.
Não reclamava. Na verdade, reclamava. Mas só do sapato apertado.
Sabia o valor do trabalho. Era mãe solteira. Criara quatro filhos daquela mesma maneira – pegando firme na labuta, recebendo o salário no final do mês, conhecendo as pessoas que, ao longo de 21 anos, passaram por ali.
Já testemunhara tanta coisa. Já fizera tantos amigos. Os filhos receberam ajuda deles para se criar. Ganhou tantas roupinhas, tantos brinquedos. Até comida. Não fosse pela solidariedade alheia não imagina como teria conseguido.
Sabe tanto disso que continua abordando os mais chegados e perguntando ao pé do ouvido: Você tem alguma roupa lá para doar? Pode ser de adulto ou de criança...
As doações pretendidas nem são mais para uso próprio ou da família. Pode até ser, mas o excedente seria enviado ao Maranhão, seu lugar de origem, onde tanta gente ainda precisa do que ela precisou para ver os filhos crescerem com o mínimo de conforto e dignidade.
Hoje estão adultos, cuidando de si, apesar de não terem prosseguido nos estudos.
Sua autoridade não foi tanta a ponto de tê-los convencido que a vida só melhoraria caso tivessem estudo. Ela mesma não tinha avançado muito. Lia um pouco, escrevia menos ainda. Assinava bem o nome.
Por ela, os rebentos teriam uma história mais próspera para contar. Mas as mulheres foram logo arranjando casamento. Já viu, né?
Ela ia assim. Sentindo os pés reclamarem. Contando os dias para o final de semana. Era quando se livrava das botinas. E colocava os pés no chão. De onde só saiam para entrar numa sandália rasteira.
Era o seu prazer maior. Podia ter churrasco, festa, namoro. Mas não havia maior deleite do que libertar os dedos. Do que libertar-se.
Pensando bem, a situação nem era de todo má. Dia desses tropeçou num galho pesado e quase caiu. Estava certa de que se os pés não estivessem tão protegidos, o estrago seria feio. Muito pior. Podia estar de atestado a essas alturas.
Mas estava ali. Não reclamava. Na verdade, reclamava. Mas só do sapato apertado.