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DEIXAR IR

Ante a possibilidade de uma vaga para estacionar resolvi parar no armarinho.


Queria comprar um novelo de lã para que minha filha me ensinasse o tricô de dedo que está fazendo na aula de trabalhos manuais da escola.


Quando desci do carro e já estava quase dentro da loja ouvi uma voz e olhei para trás.


– A porta, senhora.


Eu não entendi o que aquelas três palavras queriam dizer e me aproximei.


- Ah, deixei a porta do carro aberta?


- Não, a senhora arranhou a minha porta.


Estava entre incrédula com aquilo que me pareceu uma inverdade (pois não costumo usar de tanta força e, assim, diminuo o risco de escancarar o carro a ponto de ele atingir o que está do lado) e amedrontada (pois essas conversas sem nexo muitas vezes são usadas por bandidos para forjar uma interação, antes que deem um golpe).


- Olha moço, eu não bati na sua porta. E desejo que consiga monitorar todos os carros que estacionarem do lado do seu.


- Arranhar não é a solução, né? Ele disse.


A essas alturas o homem estava periciando o seu veículo e em atitude já bem agressiva dava a entender que a situação podia fugir ao controle e virar uma “briga de trânsito”.


Eu dei meia volta, entrei na loja e de lá gritei: Vai fazer alguma coisa que seja boa!


Quando saí, ele estava dentro do carro e temi que voltasse a me interpelar. Mas isso não aconteceu.


Essa é uma daquelas coisas com potencial de mexer com a gente por horas. Mas como na meditação, imaginei que fosse uma nuvem. E deixei ir.


Segui meu caminho e parei no supermercado que também tinha vaga para estacionar.


Estava escolhendo umas frutas quando vi, do outro lado, em outra fileira de bancas, uma pessoa derrubar uma laranja. Percebi que titubeou entre a decisão de apanhá-la ou não. E escolheu a segunda opção.


Incomodada pela atitude, vi também que era um senhor e que o movimento de se abaixar podia ser muito para o seu corpo. Decidi, então, que quando terminasse o que estava fazendo, recolheria a fruta.


Porém, antes disso, uma também senhora passou, parou, pegou e se dirigiu ao lugar em que eu estava – que era a alguns metros dali, em outra banca, escolhendo produtos diferentes.


Laranja em riste, ela me perguntou: - Olha aqui (e esticou o braço para devolver o que ela parecia que considerava ser meu).


- Foi você que derrubou isto aqui?


Fiquei na dúvida se encarava aquilo como uma gentileza, um ato de racismo ou pura desfaçatez.


Por que teria sido a escolhida para receber “a acusação” implícita ou, por que tinha cara de dona da laranja que estava no chão?


Eu estava longe da “cena do crime”, o supermercado tinha dezenas de outros clientes.


Enfim...


- Não. Eu estou aqui. Escolhendo outras coisas.


Considerei que aquela era mais uma daquelas coisas com potencial de mexer com a gente por horas. Como na meditação, imaginei que fosse uma nuvem. E deixei ir.





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