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NOSSO REFERENCIAL DE MUNDO

O nosso pai, Manoel Barbosa, foi dono de um Posto de Enfermagem. Foi precursor nesse tipo de serviço na cidade que adotou como sua, Campina Grande.

Os meus irmãos mais velhos chegaram a morar no Posto, numa casa nos fundos. E viveram ali boa parte de suas vidas e de suas aventuras. E são de lá boa parte das histórias do passado que gostam de relembrar a cada reencontro de família.

Nós, os mais novos, temos outra vivência do Posto. Ele não foi nosso lar, mas era nosso ponto de apoio no Centro da cidade.

Estávamos lá antes e depois do colégio. Marcávamos com os amigos. Fazíamos atividades, como trabalhos em grupos, por lá mesmo.

Seu cheiro está em nós até hoje – mistura de éter e esparadrapo. Seus sons, como os choros estridentes dos bebês na hora de furar a orelha ou os gritos dos adultos para tomar injeção.

Daquela rua, Peregrino de Carvalho, vinha boa parte do nosso referencial de mundo. Pelas redondezas fazíamos a maior parte das coisas. Era por ali a feira, o supermercado, o dentista, a loja de roupas infantis e de miudezas.

Circulando por lá, crescemos e vimos os comerciantes da rua envelhecer, seus filhos crescerem e a cidade, aos poucos, tomar novas formas, ganhar outros tipos de estabelecimentos comerciais, outra arquitetura, outras pessoas.

A minha Campina Grande de antigamente tem muito a ver com aquelas redondezas.

Aquele cenário é de onde partimos para fazer comparações com os tempos de hoje – as mudanças, as mortes, o fechamento das antigas lojas, a desapropriação das casas para a chegada de um mercado popular (esse foi o destino do Posto, ser demolido para dar espaço ao novo tipo de comércio).

Voltar à cidade e não passar por ali é não voltar.

Tentar reconstituir os fatos antes da passagem do tempo faz parte do nosso prosseguir.

Ao mesmo tempo em que são muitas as mudanças, em alguns pontos elas parecem não existir. É como se o tempo não tivesse passado e, para algumas pessoas que ainda estão por ali, é como se tivesse parado.

Apesar do aparelho de audição, dos cabelos poucos e/ou brancos, do olhar de ausência, do descolorido das tintas na parede, da desolação por detrás das rugas.

Recostadas no parapeito da janela tivemos nossos primeiros flertes. Dali se via tudo até o final da rua, à direita. À esquerda havia a Feirinha de Frutas, onde lanchávamos e tomávamos a sagrada água de coco.

Com mais alguns passos chegávamos ao Caldo de Cana. Era para frequentá-lo que catávamos moedas, pedíamos doações aos tios, trabalhávamos eventualmente como frilas do próprio Posto ou, Deus nos perdoe, desviávamos uma verbinha do caixa, sob o conhecimento complacente de papai. Ou não.

Boa parte de nós não se perdoa, mesmo que secretamente, por ter deixado o Posto desaparecer sem deixar provas de que existiu.

Mas quando o progresso vem, tem a força de um tanque, o poder de um trator, o descaso dos novos tempos. Nenhuma sutileza.

Temos que conviver, mesmo que secretamente, com as dores dessa saudade.

Voltar à cidade e não passar por ali é não voltar.

Tentar reconstituir os fatos antes da passagem do tempo faz parte do nosso prosseguir.


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