PINTARAM TUDO DE ROSA
Meu pai, Manoel Barbosa, foi cronista de rádio. Aliás, essa especialidade podia voltar. Não pertenci ao tempo em que papai exercia esse papel, mas fui muitas vezes encantada pela magia contida nas palavras de Wilson Maux, que teve o mesmo ofício em Campina Grande.
Quanto a Seu Manoel, uma das primeiras lembranças sobre crônicas, e suas, que tenho, trata de um texto-manifesto com o qual lutou pela não derrubada de uma árvore.
A referida espécie achou de nascer no meio de uma estrada, lá no alto de Bodocongó, onde fomos morar como que corajosos desbravadores. O chão era de terra, havia muito verde, muito mato, poucas casas, poucos vizinhos.
O ônibus não passava por lá. Não tínhamos carro e vivemos muitas aventuras na busca de fazer o trajeto centro-casa.
As estradas, talvez pelo ermo do lugar, não eram bem delimitadas. Mas a árvore - isso era óbvio para o pessoal da prefeitura - ocupava um lugar que não lhe cabia, atrapalhava o trânsito inexistente e haveria de se opor ao progresso que um dia, indubitavelmente, chegaria àquela região.
Papai não aceitava os argumentos. Com tato e sensibilidade comparou a árvore a uma mulher. Uma fêmea, tal qual o alvo de sua defesa, barriguda. Grávida. E com que frieza máquinas famintas haveriam de corroer o tronco ou ventre de uma criatura fértil, cheia de vida por dentro e arrancar-lhe a possibilidade de florir, de parir, de semear? Seria um assassinato. Seria um aborto forjado. Seria o fim cruel de um futuro pródigo.
Pelo menos daquela vez, a pobre barriguda foi poupada. O texto comoveu até mesmo o mais decidido gestor público.
Lembro-me de sua imponência. Do tamanho do seu “bucho”, do espaço torto que ocupava. Era grande e larga. Devia estar lá pelo nono mês de gestação fosse a mulher com a qual fora comparada com o objetivo de que sobrevivesse.
A estrada continua lá. De barro e pedregulho. O progresso não chegou para ela. E poucos carros ousam cruzá-la mesmo que se configure como o famoso ‘atalho’. A barriguda, coitada, não mais.
Em algum descuido – até mesmo de papai que, por certo, teria cansado da luta, ela foi sorrateiramente extinta.
Dizem que a paineira, do gênero Ceiba, tem muitas espécies no Brasil. Ocorre na caatinga nordestina e no Centro-Oeste. Mas não somente. Aqui no DF, no meu quintal público, temos uma fartura delas.
São usadas mesmo para arborização, paisagismo urbano e em recuperação de áreas degradadas. Seu caule se alarga no meio para a contenção de água, daí o apelido de barriguda. Sua semente, a paina, é usada para enchimento de travesseiros, pelúcias e afins. Sua madeira serve para caixotaria. A casca é usada na medicina caseira contra inflamação do fígado e para tratar hérnias. Se tem espinhos no tronco é porque é jovem. Com mais de vinte anos, costuma perdê-los, podendo assim, receber com menos perigos, os passarinhos.
Brasília está cheia delas. E elas estão floridas. Percebo com certa tristeza que não são tão louvadas, fotografadas, registradas e comentadas como os ipês que costumam enfeitar e enternecer a cidade a cada floração.
Mas são igualmente lindas e, com a mesma generosidade dos ipês, nos presenteiam com suas flores elegantes e seu ciclo igualmente bonito – de folhas, de nudez, de flores, de paina.
Da nossa janela acompanhamos tudo.
Do lado de fora, não nos cansamos de admirar e agradecer por tamanha gentileza.
Em tempos em que apagam tudo, as barrigudas pintam os muros e a vida – de rosa.
