No ano de 2006 eu fui morar, pela primeira vez, em um prédio da área residencial de Brasília. Antes disso, habitava um espaço na área comercial, opção mais barata e ideal para solteiros e afins.
Nem bem coloquei a mudança no apartamento a campainha tocou. Ao abrir a porta, uma senhora de idade me disse palavras de baixo calão, referiu-se à cor da minha pele e afirmou que eu não deveria estar morando ali, mas em alguma cidade-satélite do Distrito Federal.
Ela voltou a bater na minha porta, a gritar pelos corredores, a falar sozinha pelo prédio, repetindo o que me dissera pela primeira vez.
Acuada, ingênua e trabalhada na linha do ‘deixa estar’, me limitei a escrever sobre os episódios no livro de registro, ocasiões em que eu ouvia que ela era louca, que era daquele jeito mesmo, que não valia a pena fazer nada que a penalizasse.
Agi dessa forma. Deixei passar. Engoli a seco todo o constrangimento, todos os sustos, toda a tristeza que ela me obrigou a sentir. Até me mudar de lá. A minha aquiescência a essa situação explícita de abuso e de racismo até hoje me fere. O que me ampara é saber que já não sou aquela pessoa que silenciou e que baixou a cabeça para uma situação tão aviltante. É saber que cresci, me fortaleci e tenho conhecimento e lutas que não tinha na época. Tenho sobretudo a disposição para empreendê-las.
Mais de uma década depois, trago essa vivência como uma das únicas desagradáveis vividas entre a vizinhança. Acho que dei sorte desde então.
Não que ande por aí desrespeitando as normas de vivência coletiva. Mas eu canto. Canto desde que amanhece o dia, até altas horas da noite. Eu canto ao microfone. Eu canto sem ele. Canto nos dias de semana, sábados, domingos e feriados. Minha filha canta junto. E não vivemos sem música. Quando não estamos exercitando a voz, exercitamos o ouvido, com o rádio ligado e uma seleção especialíssima dos nossos hits.
Não sei se os vizinhos desgostam, se ficam irritados ou se simplesmente o som não chega até eles. Não sei se abominam ou simpatizam com meu repertório. Nunca fizeram reclamações dirigidas a mim. Nunca as recebi.
E meu universo musical é amplo, mas limitado. Não me dou muitas oportunidades de descobrir gente contemporânea. Mas reviro os baús e me deleito com o que estava escondido por lá.
Mais recentemente tenho escutado Nelson Gonçalves. Elizeth Cardoso. Dalva de Oliveira. Elza Soares. Sempre e mais.
Quando gosto de uma música, mesmo uma que não seja totalmente desconhecida, mas que surge como novidade ao meu coração, eu uso o recurso de repeti-la. Muito. Muito mesmo. Sem cansar. Para aprender a letra, para testar minha própria versão de como cantá-la, para me presentear. Para me arrepiar. Para curtir. E tenho a sorte de nunca ter sido repreendida por isso.
Para a inglesa Sonia Bryce o destino preparou coisa diferente, contam os jornais. Ela foi detida após tocar repetidas vezes a música ‘Shape of You’, de um tal Ed Sheeran (desconheço ambos: a música e o músico). A denúncia de “tortura” teria sido feita por uma vizinha que disse ter ouvido a canção por mais de uma hora e meia.
Em audiência, Sônia negou ser a autora do desconforto e alegou não gostar do referido artista. Mesmo assim, foi instruída a encontrar outro lugar para morar.
Concluo que, tirando aquela senhora de idade, convém dar vivas a todos os vizinhos que tenho e já tive. Bem baixinho. Para não os incomodar.
