Passou muito tempo sem tocar violão. Sem tocar no violão. Sem nem mesmo olhar para um. Gostava tanto. Por anos sentiu-se atraído pelo instrumento – alimentou o desejo de fazer dele o seu ganha pão.
Ainda criança se enxergava numa versão pop star, fazendo das cordas um brinquedo sobre o qual tinha total domínio e leveza.
Imaginava-se nos palcos iluminados, em rodas de amigos, em espaços improvisados onde a música era a atração principal e ele seu emissário.
Sorria de canto de boca quando pensava que receberia pedidos em gritos de plateias deslumbradas, em guardanapos de papel, em papel de embrulho, ao pé do ouvido.
Ampliaria o repertório para não deixar falta nada a ninguém. Para agradar. Para retribuir quem via em seu talento a possibilidade de uns minutos de alegria.
Também pensava no violão como aquele companheiro infalível. Bastaria acariciar sua madeira e teria toda a companhia necessária a momentos de prazer, dor, solidão. Não precisaria de mais nada ou ninguém.
Com ele sob o braço, caminharia trôpego noite adentro. Cruzando ruas, buscando novos endereços, parando nos puteiros e botequins. Juntando gente atrás de si.
Encantaria pretendentes com suas serenatas. Aguardaria que abrissem as janelas e sorrissem como quem promete, sem dizer palavra, que algo mais seria aberto por aquela chave sonora e mágica, que fazia ruir qualquer intenção de negativa.
Aceitaria o convite e, desfalecido já pelo cansaço do amor feito, se esqueceria virando-se de lado para, com apenas um gesto, alcançar o instrumento e, como que desleixado, porém atento aos gostos da mulher desejada, executasse com precisão displicente aquele número que, sabia, tocaria o coração da amante incauta.
Faria amigos. Como um Quincas Berro D’água teria amigos do porto, do submundo, do lado que ninguém enxerga e onde estão, para quem quiser ver, as melhores pessoas. As do sorriso mais escrachado, as das piadas mais picantes, as de fina ironia. As que tripudiavam dos infortúnios e faziam da vida um espaço único e original.
Teria como parceiros de andanças e troca de confidências aqueles que fedem, aqueles que roubam, aqueles que gozam, aqueles que riem, também trôpegos.
Estaria na lama. Mas com o aval das seis cordas – ou sete – ainda não se decidira, entraria também em palacetes. Pisaria mármores e granitos. Decifraria com uma canção todas os enigmas. Teria acesso livre.
Sua senha, seu passaporte, sua carteira de identificação era saber-se exímio tocador.
As imagens dos planos do menino voltaram de repente, quando se descobriu um jovem senhor que passou muito tempo sem tocar violão. Sem tocar no violão. Sem nem mesmo olhar para um.
Parecia a primeira vez. Sentiu a mesma emoção. O mesmo encontro. Ah, aquelas cordas de aço, o minúsculo braço, o bojo perfeito.
Só o violão compreendia por que perdera toda a alegria.
Querendo esquecer o destino de seu primeiro professor, dedicou-se a esquecer o resultado das aulas.
Foi traído pela paixão – escondida mas ainda pulsante.
E decidiu: a música seria, novamente, companheira.