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AQUELA MULHER

Aquela mulher é arretada.

Macho, a bichinha é cearense.

E traz no sangue o que o sangue daquele povo de lá traz.

Uma força enraizada, uma capacidade de sobrevivência às intempéries, que hoje seria chamada de resiliência.

Macho, ô bichinha resiliente.

Talvez falte um fechamento na forma como resolveu aquele causo, mas isso também sob as lentes atuais.

Há quase quarenta anos, agiu bem. Fez bonito.

Descansava o barrigão do décimo e último filho, com os pés para cima, tomando a brisa rara que aquele solzão deixava passar.

Da rede ouviu: Mulher, me traz um café.

Sentiu-se impossibilitada de atender.

Aquele cansaço.

Aquela deitação estava muito boa para ser interrompida assim, sem nem ser considerada.

Fez que não ouviu. E repetiu a indiferença.

Chegou mesmo a dizer um não em alto e bom som.

Mas sentiu a fúria despertada.

Viu o fio da navalha piscar os olhos encadeado pela luz do dia.

Viu o homem se aproximar com o facão na mão.

Antes que o punho da rede fosse cortado e ela caísse no chão derrubando também o filho que trazia no ventre, deu um pulo certeiro e se safou da agressão.

Mas aquilo trouxe um desgosto tão grande àquele coração interiorano que tomou uma decisão para a vida toda.

Aquele homem, que não a merecia, jamais tocaria seu corpo de novo. Não o consideraria mais como seu par. Com ele não faria sexo – mesmo que a procurasse.

Saiu da relação sem sair de casa.

E sonhou em ter o próprio lugar por décadas.

Todo mundo que veio depois e mais os que já estavam ouviram falar daquilo: Um dia, tomara, teria um dinheiro para bancar a própria moradia.

Se livraria da presença do traste.

Não seria obrigada a vê-lo entrar, sair, falar suas asneiras, demonstrar sua bruteza. Mais do que não dar seu corpo, não daria nada. Nem o café, nem o almoço, nem o jantar, nem a casa limpa, nem a roupa lavada.

Não precisaria trocar uma palavra sequer.

Não precisaria dirigir-lhe o olhar.

Aí, sim, estaria realizada.

Mas isso nunca aconteceu.

Não se sabe exatamente a razão.

Talvez tenha faltado essa força. Essa compreensão. Esse empreendedorismo. Essa coragem. Ou mesmo o vil metal, como ela acreditava.

Tantos anos. Ninguém ignorava o seu sentimento. O seu asco.

Era tudo visível. Ela não escondia. Ela fazia caras e bocas, ela contava sua história.

Eita mágoa grande.

Macho, aquela mulher estava ferida de morte desde então.

Chegara a morrer mesmo. Uma parte dela e da vida dela se foi quando aquela rede encostou no chão.

Bom está é agora.

Na velhice que faz antever a chegada do fim, eles continuam juntos.

Dividem o mesmo teto.

As mesmas agruras.

Que agora são outras.

Porque daquela questão das antigas tudo foi esquecido.

Há algum tempo estão em lua de mel.

Sem as torturas da lembrança.

Até parece tudo novo.

Como vivem bem.

É que ela esquece. E ele não escuta.

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