“Vê se me entende, olha o meu sapato novo”.
Eu olhei.
No lugar, sapatos gastos. Descoloridos. Sem cadarços. Esparramados para abarcar os pés que o ocupavam.
Aqueles pés se fincam às sextas-feiras num espaço vazio. Àquela hora, do almoço, dá para dizer que eles estão no meio do nada, embora estejam no espaço mais agitado de Brasília, a Esplanada dos Ministérios.
Há muito o escuto. Mas hoje foi o primeiro dia em que me aproximei.
O homem que canta Raul Seixas em voz, letra e melodia tão distorcidos, encerra vários estilos em um só.
É baixo. Negro. Grisalho. Sobre o cabelo, uma boina colorida, grossa, como se de lã peruana. Na barba longa, um prendedor amarelo fazendo um pequeno rabo de cavalo que aponta para baixo.
Nos braços, pescoços e dedos, bijuterias prateadas.
A calça apertada à moda dos cantores sertanejos.
Uma blusa preta estilo baby look está coberta por uma jaqueta cáqui de muitos bolsos e mais quente do que o dia permite.
Um violão bonito, com cara de novo, mas aparentemente subutilizado.
Óculos escuros com armação colorida e modernosa.
Paro e contemplo a cena um pouco constrangida por não ter levado sequer uma moeda. Sei que na Europa, onde fazer plateia para artistas de rua é coisa muito chique e necessária, não é de bom tom consumir a arte oferecida sem pagar por ela.
Enquanto fico lá perscrutando o universo visível daquela pessoa, recebo os olhares de gente que me observa de longe e me manda um sorriso de cumplicidade.
Talvez eu fosse a primeira pessoa no dia ou na carreira dele a parar diante de seu palco feito por blocos de cimento esburacado.
No intervalo entre uma música e outra pergunto seu nome. Não me fiz ouvir. – O quê? – Seu nome é qual? – Bim da Paz.
Olho para aquela mistura de Jamaica, sertão e rock n’roll e penso que o nome não faz muito sentido. Não combina. Ou talvez fizesse. E combinasse. Fiquei na dúvida.
Seu equipamento – instrumento e microfone – está conectado a um amplificador que, por sua vez, ganha mobilidade porque acoplado a um carrinho de bebê geneticamente modificado para transportar não uma criança pequena, mas a parafernália necessária a um pacifista mambembe.
Além da capa do violão e outros pequenos objetos, o meio de transporte era o suporte para uma caixinha em que se lia em adesivo verde e amarelo: Caixinha de incentivo à cultura.
Pensei naquela legenda. Parecia um exagero. Concluo que não. Era um incentivo, sim.
Para carregar as coisas necessárias ao seu show, para ficar sob o sol, para cantar para o nada, era preciso mais do que a vontade de ganhar dinheiro, coisa que, certamente, era o que menos acontecia ali. Era preciso amor.
Sem conversar com ele, decido partir. Aponto para o bolso em mímica de que está vazio e me comprometo, também com gestos, a voltar depois e pagar-lhe o que era devido.
Rockixe era a música que cantava no começo.
Gravei um pedaço da letra e busquei na Internet.
Ampliei meu repertório. Porque recebi um incentivo à cultura.
Foto: Gilberto Soares