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QUEM DERA SER UM ANJO

O Mundo Angelical possui 72 Anjos Guardiões, divididos em nove hierarquias. Cada uma tem seu Príncipe. Serafins; Querubins; Tronos; Dominações; Potências; Virtudes; Principados; Arcanjos; Anjos; Gênios da Humanidade.

Apesar disso, que ironia, não sobrava nenhum lugar para ele.

Queria tanto. Imaginava-se com asas. Brancas. Fartas. Felpudas.

Com elas, imaginava-se voando. Nas nuvens, também brancas. Fartas. Felpudas.

Com sua inocência de criança, talvez até angelical, não percebia a diferença que havia entre si e os escolhidos.

A pele clara, os olhos esverdeados ou azuis, o cabelo cacheado e cor de ouro.

Eram assim os anjos. Não sabia?

Podia se certificar nos livros, nas imagens, nos desenhos, nas igrejas.

Podia se certificar olhando em volta. Quantos anjos já não existiam por ali?

Não precisavam de mais um.

Muito menos dele.

Podia, sim, figurar como anjo torto. Caído.

Mas isso ele que não queria. Com sua inocência de criança, talvez até angelical, não sabia da existência do universo à parte, dos párias. Dos que abriram mão do paraíso.

Seu mundo era o da infância. Era sua identidade. Tornava-o igual aos outros. Sendo assim, tinha todo o direito de ser. Sem questionamentos.

Mas não era o que ouvia no dia da festa.

E olha que a festa era de Deus. De santo. Padroeiro. Lá do Rio de Janeiro.

No dia da festa, uma mão grande e cheia de soberba apontava. Você, você, você.

Você não!

Olhava em volta. Não havia dúvidas. Aquele dedo pontiagudo apontava para si.

Dava meia volta, cabisbaixo.

Continuava sem entender a variável que determinava sua exclusão.

Guardou o sonho de ser anjo embaixo das asas.

Foi crescendo.

E entendeu.

Era a cor da sua pele. Tão contrastante com a brancura daquelas asas.

Era a cor da sua pele. Escura.

Bela.

Mas destoante do mundo dos anjos construídos pelos homens.

Era o seu nariz. Eram os seus lábios. Até mesmo seus cabelos.

Como não percebera todas essas razões antes?

Será que existe anjo cego?

Se existisse e a ele tivesse sido dado o direito de ser um anjo, qualquer que fosse, teria sido um cego.

Mas e se tivesse enxergado naquela época? Teria conseguido emplacar sua negritude no meio de todos os outros tão alvos?

Continuou crescendo.

Aquela questão ficou lá no passado. No rol das lacunas. No mundo das ausências. Na gaveta dos traumas.

Talvez fosse exagero.

Não ter conseguido até que não fez tanto estrago assim.

Viveu com isso, viveu sem asas, até ali. Adulto. Barba feita. Grisalha até.

Foi então que passando pela frente da loja as viu. Reluzentes.

E de repente voltou a ser criança.

Não no tamanho, nem na maturidade. Mas no sonho.

Um par de asas.

Grandes como aquelas que os fariam voar. Chegar às nuvens.

Na avenida, sentiu-se livre.

No carnaval todo mundo pode tudo.

E seu corpo negro ganharia asas brancas e ele voaria por toda a avenida espelhando e espalhando purpurina e felicidade.

Queria ver quem o impediria.

Reinou sobre todas as hierarquias.

Levantara-se daquela queda em que foi impedido de desfrutar do paraíso.

Era um príncipe já.

Era DOS ANJOS.

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