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O LOCUTOR

Eram três anos já.

Podia parecer pouco. Mas era um chão. Três anos como locutor, programa diário.

Era muita saliva gasta. Muito ouvinte tornado fã. Muito amor por aquele ofício.

Por isso mesmo, não gostava de chegar atrasado. Era pontual, profissionalíssimo.

Disso não poderiam reclamar jamais.

Mas naquele dia, perdeu a hora.

Nem lembra que diabos de compromissos o fizeram esquecer de ajustar o relógio ou de ajustar-se a ele.

Os minutos corriam mais rápido que de costume e logo chegaria aquele em que teria que dizer: Bom dia, meus amigos! Estamos começando mais um....

Nossa. Não poderia ser a primeira vez. Seria mais rápido que tudo no mundo. Não importa se furasse o sinal vermelho, quase atropelasse um vovozinho que tentava cruzar a pista ou infringisse alguma outra lei de trânsito.

Não importa se tivesse que correr e chegar bufando, suado, cansado, quase sem voz. Diria, mesmo assim, entre um arfar e outro o seu cumprimento oficial e abriria aquele programa na hora determinada.

Vestiu o paletó. Era o que o faltava. E enquanto pegava a pasta sentiu uma pontada na barriga. Lá no pé da barriga. Conhecia aquele sintoma. Não era simplesmente como o primeiro sinal que costumam soar nos teatros para apontar a proximidade do espetáculo.

Era o terceiro sinal. Aliás, nem era mais sinal. Era o momento justo em que precisava ir ao banheiro. A dor aumentava. Certamente, comera algo passado ou exagerado na gordura no churrasco de ontem.

Entre aliviar-se e manter a fama de trabalhador perfeito, preferiu a segunda opção.

Apertando uma perna na outra, fazendo caretas, rezando em segredo, suando frio,

Entrou às cegas no estúdio.

Não sabe se cumprimentou o técnico. Nem sequer como chegou. Será que teria deixado algum vovozinho morto pelo caminho?

Olhou para o relógio. Just in point. Bingo.

Puxou a cadeira com desleixo, recostou-se o mínimo possível, o suficiente apenas para se aproximar do microfone. Pigarreou. Acertou as cordas vocais.

Deu sinal com a mão direita. E logo viu acender uma placa amarela em que se lia “No ar”.

Finalmente, podia dizer, não sem sentir as pontadas na barriga e o aumento dos movimentos peristálticos: Bom dia, meus amigos! Estamos começando mais um....

Pediu para subir o som. Descer antes do tempo. Chamou uma música e saiu correndo, falando sozinho.

Terminado o ‘serviço’, deixava o banheiro ainda de mãos úmidas e cara de final feliz, quando foi interpelado pelo diretor da emissora.

Sentiu a ironia na pergunta que se seguiu: Já deu sua cagadinha?

Sentiu o rosto esquentar. Era uma pergunta constrangedora e além do mais se sentia descoberto naquele segredo que guardara tão bem em nome da ética profissional.

Dei, uai. Disse rindo, por fim.

Pois é. Eu sei e todos os ouvintes sabem. O microfone ainda estava aberto quando você soltou essa pérola. Venha ouvir a gravação...

Nem foi preciso.

Ele bem desconfiou que aquela frase murmurada como confissão para si mesmo, dita quase em êxtase, antes de se levantar correndo e depois de abrir o programa (pontualmente, é bom que se diga), era a culpada de tudo.

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