UM PASSADO FELIZ DE MULHER
Antes daqui não há passado. Ninguém sabe detalhes da vida dela. Não há velha amiga
íntima que tenha convivido com seus pais, que tenha crescido junto, dividido os primeiros
segredos adolescentes, que saiba quem foi a primeira paixão da escola, sequer para dizer
se houve escola.
Não se sabe se nasceu na cidade. Ou se veio para cá junto aos pais bem colocados
profissionalmente no governo. Ou se fugiu de abusos por parte do padrasto e pegou
carona na estrada, subiu na boleia de um caminhão caindo aos pedaços. Se veio num
ônibus malcheiroso, varando madrugadas entre choro e vômito alheios.
O que se sabe é que, mulher feita, era bonita. Gostosa. Do tipo arrasa quarteirão. Talhada
para dar e sentir prazer. Uma Geni buarqueana, ora bendita, ora maldita. Gozou suas
águas turvas. Recebeu da mesma substância. Foi paga com a mesma moeda.
E como dançou! Porque se fudeu e porque dançou mesmo. Ao som da música chiada
daquele bordel, aos fundos do Conic. Bonito de se olhar, cheio de lascívia.
Naquela calcinha sem charme entraram notas, dedos, paus. Mas ela girava. Se contorcia
como bailarina russa. Era para seduzir. Precisava comer, beber, comprar perfume barato,
maquiagem de chumbo. Era necessário se fazer bonita. E se fez.
Foi o que pensou o espanhol que enxergou além da carne, a possibilidade de uma alma. A
vida na Espanha era bem melhor do que a noite enfumaçada, suada, fedida. Ela foi.
Continuava bem mulher. Mas não da vida. Resgatada, cumpriu o papel. Como esposa,
deu ao seu homem o que ele mais queria: um filho. Um fruto. Um varão. Era respeitada.
Mas depois da última briga...
Podia ser mãe e esposa. Podia até mesmo amar. Mas levar tapa na cara? Grito no
ouvido? Dedo em riste? Isso não.
Nem sabe como aconteceu. Chegou na porta da antiga boate. Já não havia porta. Nem
boate. A Beth’s deixara todos os clientes na mão. Vendida para a igreja. Cacete.
Não precisava mesmo. Era outra. Nem poderia ganhar a vida à custa do corpo, do gozo,
das chupadas, nem precisava de muito. De nada. Só da rua. Só um trago. Só o crack. Que
novidade boa, aquela. Deixava torpor, levava falsas verdades.
Entregou-se. Mais uma vez. Já não passava de um amontoado de pele enrugada e ossos
descobertos. Deixava antever o que fora, quando olhada mais atentamente. Mas para
evitar ficar desnuda, ficou agressiva. E afável. Batia de punhos cerrados nas costas de
quem lhe negasse um cigarro ou uma moeda. Outro dia, chamava de gatona e soltava
beijinho para as mulheres que ainda eram.
De repente, alguém lembrou. Chamava-se Céci. Naqueles tempos, ainda. Hoje, não se
sabe. Antes daqui não há passado. E nem futuro.
