O som me acordou.
Aturdida. Entre o abrir os olhos. Bocejar. Tentar colocar os pensamentos em linha reta. Pensei que podia estar sonhando. Apurei os sentidos. Era verdade. O interfone tocava.
Fui pega de surpresa pelo estranhamento. Em época de isolamento social, aquele era um som proibido.
Visitas? Há muito não sabia o que era isso na prática. Recolhida que estava, fazendo a única coisa que conseguia – em meio a tanto movimento interno – ficar em casa.
Encomendas? Não pedira. Estava tentando manter uma ética de não fazer outras pessoas circularem em nome do meu respeito à quarentena.
Recado do síndico sobre alguma nova regra do prédio em tempo de Pandemia? Era cedo demais.
Com a voz trôpega. Atendi. Devo ter balbuciado qualquer coisa que dava provas de que conseguira chegar ao outro lado daquela linha e dizer, no mínimo, alô.
A funcionária anunciava, sim, uma presença. O que me deixou assustada.
Era um amigo. Mauro. Pedia, segundo ela, que eu atendesse o celular.
Ainda entre bocejos. Olhos inchados. Cabelos assanhados. Sinapses lentas. Entendi. O telefone devia estar sem bateria. Ele tentara ligar. E, sem sucesso, se fazia anunciar para me dar um recado. Informação repassada por algum conhecido em comum.
Em segundos, vieram dezenas de possibilidades. Nenhuma alvissareira. Devia ser notícia ruim arranjando jeito de se espalhar.
Expliquei que o celular estava sem bateria. O que ele queria que eu fizesse? Descesse? Ou falaria comigo via interfone?
Pediu que eu fosse até lá. E ante a urgência pressentida, desci como estava. Ainda entre bocejos. Olhos inchados. Cabelos assanhados. Sinapses lentas.
Ele. Na calma habitual. Máscara no rosto. Distância mantida. Caminhou para o gramado. Por onde o segui. Ainda com o coração na mão.
Vinha a pedido de minha irmã Vitória. Da Suíça, tentara falar comigo. Também deu com o celular sem bateria. Mas não sabia que o silêncio se devia a isso – para aqueles que eram os primeiros dias do isolamento, meu refúgio foi silenciar. O aparelho telefônico. Minha boca. Meu pensamento. O tanto que isso fosse possível.
Ela ficou preocupada. Mauro também. Sabiam-me sozinha. De grupo de risco para Covid-19.
Ele, contou-me, largou o café da manhã. E o seu isolamento social. Para saber se eu estava viva. Para contar a minha irmã que, sim, eu estava viva.
E isso me fez renascer da letargia. Da morte simbólica que também era. Ver o mundo todo se protegendo de inimigo invisível. Para sobreviver. E, ao mesmo tempo, ostentar números, às centenas, de quem não conseguira. E perecera. Para a morte. Fazendo até mesmo ela perder o sentido. E os ritos. E rituais. Corpos sem destino. Trocados. Sem lugar para o descanso último. Sem velório. Sem despedida.
E eu estava viva.
Foi o que Mauro contou à Vitória. Enquanto eu ligava o telefone na tomada. E pensava, como escreveu Caetano Veloso, no quanto a amizade está para o amor. E quem há de negar que esta lhe é superior?
Imagem de Sasin Tipchai por Pixabay