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TRANSIÇÃO CAPILAR - LUGAR TODO ESTRADA

Faltava energia na minha casa há horas. Eu tinha esperado desperta por sua volta. Mas já alternava cochilos com descrença, fora o não conseguir fazer minha reclamação à companhia energética da cidade, quando o telefone, gastando seu último pingo de bateria, tocou. Era encomenda de livro. Urgente. Quem deveria ganhá-lo ia viajar dali a pouco. Para o exterior, onde mora. Era agora ou nunca.

Desci quatro lances de escada. Na semiescuridão. Saí prédio afora meio sonâmbula. Meio tropeçando nas sombras. O farol do carro nos alumiava – com seus favores enxerguei o suficiente para fazer uma dedicatória. Deve ter fugido das linhas imaginárias – a cada palavra. Antes da primeira, no entanto, fui interrompida.

Era preciso ouvir o relato da futura dona. Para entender a razão dela precisar do livro. Urgente. E para sua história guiar o recado de próprio punho a ser deixado por mim nas primeiras páginas.

A moça, amiga da minha amiga, falou da sua transição capilar. Iniciada há quatro anos mais ou menos. E não concluída. Ainda. Junto à mudança no fio do cabelo mudaram tantas coisas, dizia-me, enquanto eu me baixava um pouco para vê-la pela janela do carro. Ela era outra. Já. E ainda em construção.

Ao ver os crespos, amigos e conhecidos se dividiam sobre o que pensar. Chegava a ouvir críticas e questionamentos. Outras vezes, silêncios constrangidos. Quem não a via há muito, não deixava de demonstrar estranhamento.

Percebeu que os olhos dos outros ficavam mais tranquilos ante um cabelo escorrido – ainda que ele não contasse a história de sua dona. Ainda que ele a apagasse. A história. De sua dona. Ainda que ele fosse resultado de uma espécie de cegueira. De imposição de uma estética eurocêntrica e colonizadora. Ainda que ele fosse um tipo de estupro. De usurpação. De farsa. Ainda que um dia tenha sido escolha consciente. Para deixá-la mais à vontade nos ambientes frequentados.

Mas ela continuava padecendo de um sentimento de exclusão. Cabelos lisos não eram passaporte de entrada para um mundo novo. Continuava não adaptada. Mesmo tenho demorado a perceber. Como peixe fora d’água. Apesar e por causa. Do seu cabelo. Liso, afinal. Como pedia a etiqueta. Como sabia ser prerrogativa do ambiente de trabalho. O que era agora o problema?

Alguma coisa deixou de fazer sentido. Na química. Por ali caminhou de volta. E ainda caminha. Quando se viu só em espaços onde não encontrava pares. Deu de cara com seu corpo inteiro. Então era isso.

Buscou ajuda em grupos que reúnem mulheres afrodescendentes. Coletivos. Foi rechaçada. Apelidada. Tinha a pele clara demais. Acusaram-na. Encontrou aqui ou ali, numa ou noutra, acolhimento. E foi o suficiente. Para sair deles. Entrar numa viagem solo. Necessária. Dolorida. Lugar sem ponto de chegada. Todo estrada.

Rumo à liberdade. A dela. De ser. E estar. Não sem dor. Mas com quebra de correntes. Antigas. Invisíveis. Apertadas.

A dedicatória saudou a nova mulher. Negra. Em sua descoberta. E no apoderar-se de sua verdade. Para construir outra. Caminho de volta. Sobre passos que vêm de longe. E fazem achegar-se. Em si. Para si. Lugar sem ponto de chegada. Todo estrada.


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