Internalizamos o fato de o homem ser o lobo do homem. Quando não estamos no papel do homem-lobo, estamos do outro lado – homem com medo do lobo, que por sua vez é homem. Estamos assim, como diria o cantor e compositor maranhense, Zeca Baleiro, andando tão à flor da pele. Ao contrário do que diz em seus versos, que qualquer beijo de novela o faz sonhar, sinto o nosso florescer um tanto mais sombrio. Bem mais perigoso. Bélico. Beligerante.
Ontem mesmo, na Feijoada da Frente de Mulheres Negras do DF e Entorno, senti isso. Eu vi uma mesa livre, para duas pessoas (eu tinha chegado sozinha) e quando me aproximei dela e coloquei minha bolsa, surgiu alguém e disse em tom meio ríspido: essa mesa está reservada. Eu não sou de entrar em brigas. Muito menos as pequenas. Tirei minha bolsa. Estilo pianinho. Mas dei uma olhada na mesa e não percebi nela indicativos de que eu estivesse burlando a, agora suposta, reserva.
Pedi desculpa mas disse que não tinha como saber. Não havia objeto apontando “donos” para a mesa, muito menos a plaquinha de “reservado”. A moça do caixa, já conhecida minha de outros carnavais, digo, feijoadas, foi lá e disse que não havia reservas.
Já a pessoa que lutava pela mesa disse: é que eu me levantei e fui lá falar com o garçom. Ou seja, a mesa estava realmente vazia e livre de sinais de que não poderia ser ocupada, quando me candidatei ao cargo de sentante.Já estava pegando o banquinho e saindo de fininho, quando ela deu uma amansada e disse: - É só você? Pode sentar aqui também se for só você.
Para honrar a deposição de armas, aceitei. Aos poucos, entabulamos conversa e tive o prazer de assistir a uma mulher negra, que chegara ali por acaso pois não queria cozinhar naquele domingo, respirar aliviada ao encontro dos seus e suas. Era sua estreia no evento. Depois, comprou um adereço – meio tiara/meio turbante e ficou linda de se ver. Foi crescendo na sua identidade. E saiu de lá gigante. Pelo menos aos meus olhos. Final feliz. Lobas amansadas. Transformadas em cordeiros.
Outro dia, fui pegar um documento em uma escola de arte na qual minha filha estudara. Seria vapt-vupt. Considerei deixar o carro em fila dupla, gesto muito comum e necessário em Brasília. Dei de cara com uma vaga e pensei que seria melhor utilizá-la, mesmo que fosse por alguns poucos minutos, para o bem fluir do tráfego .
Carro estacionado, percebo mãos agitadas e gritos do outro lado da rua. Um jovem, seus músculos e sua camionete. Ele gritava que pô, estava esperando. Estava ali. Esperando. E eu estacionei na vaga “dele”. Aí, eu um pouco impactada pelo abacaxi que caia no meu colo à revelia, consegui dizer que não havia sido possível vê-lo, do outro lado da rua, esperando, esperando. Mas que não se preocupasse. Eu devolveria a vaga ao seu dono. Quando fui dando ré, ele disse que não precisava mais. Acharia outro lugar. Eu disse: Toda sua. Toda sua. E saí. Ele titubeou, mas fez o carro entrar no espaço. E dessa pendenga demorei um pouco mais para me recuperar. Pois o moço estava nervoso. E eu, inocente de todo.
Durante minha estada na Europa, em outubro, fui a um supermercado. Uma pessoa terminava de passar suas compras na minha frente. Quando olhei para a esteira, não vi meu item. Era só um. E pensei rápido que a moça da frente o tinha anexado por engano. Olhei assustada para a funcionária do caixa, já me sentindo lesada e pensando em que língua ia me explicar – eu sabia que seria em inglês. Sapequei apenas uma palavra em Deutsche. - Wo? E dobrei os braços para terminar de expressar com o gesto de dúvida o que o alemão capengando não me deixou falar.
Ela apontou para a minha caixinha. Colocada por ela em uma prateleira da máquina registradora. Fiquei com aquela vergonha pela exaltação que, certeza, ela notou.
E pensei sobre o quanto estamos todos à flor da pele. Vendo coisas onde não existem. E deixando de ver, talvez, o essencial.
Imagem de Gerd Altmann por Pixabay