Quando cheguei ao térreo ouvi os restos/rastros de uma discussão. Uma voz masculina. Uma voz feminina. A última frase: me respeite você. Passou por mim um senhor com olhos esbugalhados. De raiva. Eu o conhecia de vista. Sabia-o morador do mesmo prédio. Sabia que não respondia a bom dia e que procurava pegar o elevador em que eu não estivesse. Já chegamos a ir juntos. Mas sem acolhida.
Percebi mas não o tanto que deveria – naquelas palavras gritadas – que havia desvantagem. A voz masculina era mais alta. Era mais cheia de certeza. Ainda afirmei: Ei, o que é isso? E abafei minha vontade de entrar numa pendenga ainda de razões desconhecidas. Que não era minha. Sobre a qual sabia nada além de palavras escapadas no elevador. O dia já estava sendo duro demais. Mesmo sem aquilo.
Quando saí, deparei com a dona da voz feminina. Minha vizinha. Disse: Era você? Se eu soubesse, tinha entrado mais. Essas palavras me trouxeram culpa depois. Reflexão.
Eu não precisava saber. Onde eu ouvir uma voz masculina gritando sobre uma feminina, devo entrar. Deve ser um pacto. Entre todas. Entre todos. Meu com meu sangue. Que merda, pensei. Ainda não estou pronta. Eu pensava que já estivesse pronta.
A minha vizinha, já não é mais. Ela acabava de tirar, talvez, os últimos objetos do apartamento e trancar, também pela última vez, a porta do que havia sido porto seguro. Seus pertences estão em guarda-volumes. Uma coisa ou outra na casa de amigos, para onde também estava indo. Uma semana antes de embarcar rumo à pesquisa de doutorado na Angola. Serão sete meses por lá. Em uma viagem que começa no desconhecido.
Havia deixado a porta do prédio aberta, contou-me. O carro que recebia seus objetos estava parado quase na frente. O homem de olhos esbugalhados, reclamou. Que fechasse a porta. Quem haveria de subir atrás dela? Para quem abria o flanco da insegurança? Para um dos seus? – era o que estava implícito. Não. Ela estava de mudança. Havia regras. Ele gritou. Que ela respeitasse as regras. Racista. Concluiu sem que precisasse de grandes esforços. – Comigo ele não tem vez.
Eu exaltei que estivesse de olhos abertos para perceber e responder à altura. No timing certo. Mas pensei depois que não devia ser necessário. Estar sempre alerta. Estar sempre aberta. Para receber o ódio alheio. Despudorado.
Não faz muito tempo conheci minha vizinha. Uma semana? Feliz por tê-la. Foi o que eu disse em minha primeira conversa. Mais uma preta na Asa Norte. Morando. Em outros papeis. Resistência. Também pensei depois no teor da conversa. Coisas que já deviam ter passado da condição de assunto. Para a normalidade.
Mas eu ainda estava impregnada da experiência da outra vez em que morei na quadra. Da vizinha que bateu na minha porta e perguntou o que fazia ali. Era para estar na periferia. Citou algumas cidades do Distrito Federal, consideradas por ela como as certas para mim. Chamou-me de puta. Piranha. Negra. Diversas vezes. Como resultado, fui vencida. Saí do prédio. Fosse hoje, não seria assim.
Fosse hoje, fosse hoje. O que tivemos para hoje? Um homem gritando para uma mulher. Um homem insultando uma mulher. Que respeitasse as regras. As regras. Pensemos sobre as regras. As que ele quer ver mantidas. Após 1888. "Em pleno século vinte e um".
A minha vizinha estava de olhos abertos. Alma. Nervos. Em frangalhos. Tremia. Tinha os olhos, além de aberto, marejados. Abracei-a. Um abraço de ‘estamos juntas’ que podia ter outras motivações. De alegria. E não apenas ancoradouro de dores impostas.
Não passarão. Eu disse enquanto seguia meu rumo. Mas temia dizer mentira. Temia nunca estar pronta. Temia a certeza de que não só não passam, como estão entre nós.
Não devíamos estar alertas o tempo todo para responder racistas. Na hora H. Isso estava errado. Devíamos usar nossa vitalidade, energia, força. Para outras agendas.
Respirei. A minha vizinha ia rumo à pesquisa de doutorado em Angola. Eles passaram. Ela, ia voar.