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EU VIREI CÍNICA

Morreu Fernanda Young. Senti. Senti por sua idade. Senti pela forma. Senti pelo lugar em que aconteceu. Senti pelos filhos. Senti pelo marido. Senti pela família. Pela arte. Pelo humor. Pela cultura. Pelo sarcasmo. Pela literatura. Agora, um tanto menos ousados – é o que dizem. E eu creio. Não conheci a obra dela. Não li seus livros. E praticamente desconhecia sua produção para a televisão – pois há muitos anos não vejo tevê. Com exceção de Os Normais, muitos nomes de programas eram inéditos até o último domingo.


Pessoa pública. Renome nacional. Nesses casos, há um confronto coletivo com a morte. E com tudo o que retira. Com tudo o que deixa. Há a perplexidade por sua forma de se achegar. Faz que a gente vai descansar. Nos faz colocar uma mochila nas costas. Escrever que onde queres descanso, sou desejo. Depois, se disfarça de asma. Com a qual se poderia lidar. E dá seu golpe certeiro. Arrancando o ar. Fazendo parar o coração. Onde queres prazer, sou o que dói.


Trabalhado na área de meio ambiente e sendo mãe de uma criança, não deixo de pensar que as densas fumaças. As mudanças do clima. As queimadas. As matanças. Têm relação com isso. Assim como com a tosse incessante da minha filha. A minha. A do amigo dela, da minha filha, cujo pai acordou-se sobressaltado na segunda-feira.


O que Young tinha é o mesmo que tem seu jovem menino. E, de repente, a verdade obvia que se tenta esconder com a rotina. Uma rotina eventualmente feliz. A morte. Ela chega. Também li relatos nas Redes Sociais. De gente amedrontada. Porque uma morte longínqua abala a todos em raios de distância – por se mostrar próxima. Companhia íntima. Antônimo. Sinônimo. As reticencias de cada um de nós. O ponto final.


É um tempo de duração desconhecida. A vida. Vem cheia de obrigações. De desafios. Jogo mortal. Vence quem descobrir seu propósito. Quem se realizar. Quem enriquecer. Há variável para todo gosto. Penso que Fernanda Young fez da sua linha do tempo algo que deu sentido ou que amparou os tempos em que o sentido faltou. Deixa um nome. Um legado. Sentimentos bons.


Eu virei cínica desde que descobri sobre a morte. Sua face mais gritante. Quando nos tira alguém de dentro do coração. Quando se faz anunciar de madrugada. Em telefonema sorrateiro. Quando leva alguém que julgávamos imortal. Como eram todas as vidas amadas. Até sua ocorrência. Quando desconsidera a importância da vida que já não há para aquelas que ficam. Quando não se pergunta se uma filha fica órfã. Se irmãos vão se sentir para sempre solitários e incompletos. Quando a vida dos pais vai diminuir de tamanho e de sentido para existir.


Eu virei cínica desde que morreu meu irmão Raniere. E nenhuma outra morte me surpreende. Porque aprendi como age. Não me pegará de surpresa. Porque sei que é seu método. Surpreender.


Já entendi que a vida é um sopro. Que cada dia pode ser o último. Que o pó do retorno nos espreita. Sedento. Porque há uma morte que vira divisor de águas. Nos leva um pouco. Nos deixa natimortos. Zumbis. Fingindo superação. Ficamos metade neutralizados. Metade infelizes. Metade incompletos. Metade desesperança. Metade desintegração. Inteiramente cínicos. Eu virei cínica desde que morreu meu irmão Raniere. E onde não queres nada, nada falta.









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